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Crítica | Tudo Isto Acontecerá Ontem

Quem é você, na fila do passado?

por Luiz Santiago
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Existem histórias criadas para quebrar barreiras, para estabelecer diálogos com o público que vão além do básico e para fazer aqueles deliciosos jogos de entretenimento e reflexão sobre a vida que algumas obras de arte conseguem nos proporcionar. Tudo Isto Acontecerá Ontem é uma dessas histórias. Mas as coisas que a tornaram possível aconteceram… bem antes de ela existir. Falemos, pois, de sua linha de produção. Em 1985, numa aventura chamada O Segredo da Mona Lisa (onde também vemos a primeira aparição do Professor Marlin), a famosa revista italiana Topolino trazia ao mundo o primeiro capítulo de um arco/subsérie/saga que faria a alegria dos leitores e que até hoje (escrevo esta crítica em março de 2022) segue tendo novos capítulos em sua longa caminhada: as histórias sob o guarda-chuva de A Máquina do Tempo. Nessas situações, MickeyPateta acabam viajando no tempo para os mais diversos lugares, enfrentando os mais diversos perigos — cabendo aí, por inúmeras vezes, a presença dos professores Marlin e Zapotec (que apareceu pela primeira vez em O Enigma de Mu, de 1979).

Em 2015, a fantástica dupla Casty (roteiro e arte) e Massimo Bonfatti (arte) se uniu para criar uma nova trama do Mickey dentro do arco Máquina do Tempo, enviando o famoso rato da Disney para o passado e fazendo com que ele encontrasse uma versão jovem de si mesmo (e também da Minnie e do Pateta), tornando essa leitura um delicioso exercício metalinguístico que começa no dia do aniversário do Mickey, em 18 de Novembro de 2015. O texto indica para o leitor, desde a primeira página, que algo não está normal em Patópolis. É uma narração breve, mas bastante precisa e instigante, indicando fenômenos atmosféricos contrastantes que tomavam a cidade e davam àquele dia a característica de “estranho“. Mesmo sem ter nenhuma noção do que está para acontecer, o leitor é tomado por uma expectativa de que essa estranheza afetará o protagonista e poderá ter algo a ver com o empurrão dele para o passado.

Aventuras de viagem no tempo são bastante perigosas, narrativamente falando. Por abrirem um buraco no roteiro (basicamente criando uma trama em abismo, em outras palavras, “uma história dentro da história“), elas exigem ao autor que faça um trabalho de ida para o passado ou futuro e um retorno para o presente de forma irrepreensível, orgânica, com os dois lados da trama bem conectados e, principalmente, com a história do presente sendo forte o bastante para suportar esse tipo de interrupção benéfica em seu interior. Em Tudo Isto Acontecerá Ontem, Casty beira à perfeição nesse aspecto, e só não a alcança de fato porque o retorno de Mickey ao presente se dá com uma luta um tantinho insossa contra o Bafo-de-Onça, sem contar o “salvamento” que ele consegue fazer nesse desfecho. Isso, somado a uma única cena na história perdida do ratinho (A Luva de Amnèzja), onde um barco de peixes aparece do nada no meio do rio, acaba tirando o pedacinho que faltava para essa aventura ser uma obra-prima. Mas ela está ali bem perto, com certeza.

É inacreditável a força que tem uma boa história de um personagem tão conhecido e tão importante quanto o Mickey encontrando uma versão de si mesmo, no passado. E melhor ainda é quando o enredo em que isso ocorre entrega-se à metalinguagem, chamando a atenção para o caráter referencial da história e dando inúmeras piscadelas para o leitor no decorrer de todo o processo. Falando nisso, eu peguei cameos de Leo Pulp e do Gato Félix no meio da multidão; além, é claro, da aberta referência a …E o Vento Levou, o que provavelmente coloca esses eventos no ano de 1939, mas a data está propositalmente ocultada em todos os cartazes que vemos. A saga já seria incrível se houvesse apenas o retorno ao passado, para resolver uma tentativa do Bafo em dominar o mundo; mas tudo cresce ainda mais de qualidade — e note como os desenhos também mudam na representação dos personagens, assim como a aplicação de cores! — quando a história dentro da história, dentro da história é iniciada.

O que “sobra” para nós, através do tempo? O que a gente consegue ver em nós mesmos, depois de tantos anos de vida? Tudo Isto Acontecerá Ontem chama a atenção para essas reflexões, fazendo o protagonista perceber suas falhas, sua arrogância e também seus pontos positivos de quando era mais jovem, e o modo mais leve, mais responsável e talvez cauteloso até demais de levar a vida quando mais velho. Cada idade, cada fase, cada Era da nossa existência nos traz um conjunto diferente de coisas que nos marcam e nos moldam para que cheguemos à próxima fase, seja ela qual for. E no meio desse processo é que encontramos bolsões de felicidade e, com sorte, a companhia de um amor e de pelo menos um grande amigo. Confesso que terminei essa aventura emocionado e com um largo sorriso. Existem valores que nos tocam facilmente, que evidenciam aquilo que a gente valoriza e que desejamos que esteja conosco o tempo todo. Mesmo uma “simples” história em quadrinhos pode trazer isso à tona: a receita para se viver bem é saber encontrar as companhias certas (você mesmo e, se possível, alguns outros) no meio do caminho.

Tudo Isto Acontecerá Ontem (Tutto questo accadrà ieri)  — Itália, 24 de novembro de 2015
Código da História: I TL 3130-1P
Publicação original:
 Topolino (Libretto) #3130
Editoras originais: Mondadori, Disney Italia, Panini Comics
No Brasil: Mickey #883 – 884 (Editora Abril, março de 2016)
Roteiro: Casty
Arte: Casty, Massimo Bonfatti
Capa original: Giorgio Cavazzano (arte), Andrea Cagol (cores)
71 páginas

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