- Há spoilers. Leiam, aqui, todo o nosso material sobre a franquia.
Em minha crítica de A New Life, fiz o máximo para emprestar lógica à virada de Pike para uma posição anti-Layton ao ponto de ele fazer esforços para sabotar o agora líder do Perfuraneve. Infelizmente, porém, tenho minhas dúvidas se eu consigo manter meu raciocínio agora, depois de assistir Born to Bleed, episódio que faz sua própria racionalização das ações de Pike, mas termina desperdiçando completamente um personagem que ainda tinha muito – mas muito mesmo – a oferecer à série.
Meu problema não é a morte em si, a primeira grande morte na série, se formos pensar bem e se considerarmos Melanie como uma incerteza na base do sempre certeiro lema “sem corpo, sem morte”, mas sim os eventos que levam a ela. A investigação de Till é rápida demais e fácil demais, para começo de conversa e a tentativa de uma saída diplomática que acaba em sangue é também muito simplista e conveniente, sem maiores dificuldades para um Layton que, não podemos esquecer, já estava ferido antes. Entre o começo da investigação e a luta de facas, existia muito potencial desenvolvimento para a relação entre os dois machos alfa do trem (Wilford está acima dessa caracterização, obviamente), mas Graeme Manson parecia mais interessado em se livrar de Pike sem emprestar ao personagem o tipo de abordagem que ele realmente merecia.
Não que meu raciocínio sobre a raiva que Pike passou a nutrir por Layton não seja aplicável ou que de alguma forma seja negado por Born to Bleed, mas o problema é que o roteiro de Tiffany Ezuma, apesar dos esforços dramáticos de Steven Ogg, simplifica tudo ao ponto de transformar Pike em um capanga que não gostou do que seu chefe o mandou fazer, ou seja, um bandidinho qualquer que faz bico e bate o pé por não querer mais Layton como o líder de tudo, até porque Ruth, sua paixão, merecia a coroa. Pike merecia bem mais do que apenas isso e sua consequente eliminação – mesmo que rogando praga para Layton e, em última análise para todos os habitantes do trem – sem uma efetiva construção maior do que 10 segundos de luta pareceu algo feito unicamente pelo valor do choque.
Mas isso não quer dizer que essa linha narrativa não tenha tido seu valor. A direção de Leslie Hope conseguiu criar um excelente momento de tensão na locomotiva Big Alice, com Pike segurando o bebê de Layton e Zarah no exato momento em que Till liga para Layton com suas conclusões. A virada de câmera foi uma jogada de mestre e, ali, eu tive todas as esperanças de que Pike teria uma abordagem completamente digna, firmando-se não como um capanga zangadinho, mas sim como um novo líder underground reunindo aliados para derrubar Layton e colocar Ruth no poder. Até mesmo seu encontro com Asha deu a entender que ele guardaria a revelação indireta de que Nova Éden é uma farsa como arma para atrair pessoas para seu lado, talvez até encetando uma aliança hesitante com Wilford. No entanto, esse maravilhoso início foi diluído, todos esses momentos foram perdidos como… lágrimas na chuva (he, he, he…).
Duas narrativas paralelas, porém, me intrigaram. E não, nenhuma delas tem relação com o reaparecimento de Miles, que se tornou personagem-brinde da série ao ponto de sequer merecer comentários maiores. Portanto, a primeira narrativa a que me refiro gira ao redor de Roche, agora internado no vagão sanatório (na hora que mencionam o nome do vagão eu fiz conexão mental com O Alienista, de Machado de Assis, já que aquele vagão ali parece o único contendo pessoas sãs em meio à loucura dos outros 1.028. Seja como for, a conexão que Alex faz com a filha de Roche me pareceu tão completamente aleatória e sem propósito maior do que tirar o pai da cela acolchoada, que fiquei na dúvida se o que estava vendo eram sequências para fazer com que o episódio chegasse ao seu tamanho regulamentar ou se haverá algum concatenamento lógico futuro que revele esse “desvio” como um momento importante para a temporada. Só o tempo dirá…
A outra linha narrativa paralela foi mais breve, mas também mais interessante e… estranha…, com Miss Audrey pagando LJ com o olho de vidro reserva de seu pai – falando em maluquice, olha aí a prova maior! – para ter acesso a um Wilford completamente atordoado pela injeção de fluido de suspensão em seu coração que começa a enxergar que a tal história de Nova Éden de Layton faz sentido. É isso mesmo: Wilford parece achar que o paraíso quentinho e arborizado lá no Chifre da África, que o delirante Layton, seu inimigo mortal, criou do nada porque nem a ciência de Melanie permitiria essa conclusão, realmente existe para desespero de Miss Audrey e, de certa forma, para meu desespero também. E olha que eu sou totalmente a favor de esse pessoal encontrar um lugar que os permita recomeçar a colonizar a Terra, mas não algo que até tenha começado cientificamente, mas que, agora, passou a ser literal fake news com base em visões messiânicas de um líder que nunca, em momento algum, provou-se como tal.
Se Wilford realmente estiver de acordo com essa possibilidade, o que obviamente minimizaria sua vilania, e especialmente agora que Pike, como possível outro vilão, foi eliminado, fico me perguntando o que restará da série. Será que os delírios se tornarão realidade? Será que tudo acabará bem, com os últimos sobreviventes de nosso planeta abraçando-se em harmonia cantando Imagine em uníssono? Minha esperança é que Graeme Manson tenha algum ás na manga para descarrilar essa ideia simplista nos próximos episódios…
Born to Bleed foi um episódio assustador. Pike, depois de ser transformado em uma criança insatisfeita pelos pais não terem comprado o doce que ele queria, foi defenestrado sem cerimônia; Layton teve seu devaneio corroborado por um Wilford em recuperação e Alex ganhou seu momento ternura para começar a parecer uma pessoa normal em meio a todo o trauma por que passou. De minha parte, acho que começarei a torcer por LJ agora, pois qualquer personagem que cobra o olho postiço do pai por seus serviços e o coloca na boca sem nem dar uma lavadinha nele parece muito mais interessante do que o que sobraram…
Expresso do Amanhã – 3X06: Nascido para Sangrar (Snowpiercer – 3X06: Born to Bleed – EUA, 28 de fevereiro de 2022)
Showrunner: Graeme Manson (baseado no filme homônimo de Bong Joon-Ho e na graphic novel O Perfuraneve de Jacques Lob, Benjamin Legrand e Jean-Marc Rochette)
Direção: Leslie Hope
Roteiro: Tiffany Ezuma
Elenco: Daveed Diggs, Mickey Sumner, Alison Wright, Lena Hall, Iddo Goldberg, Sean Bean, Katie McGuinness, Sam Otto, Sheila Vand, Roberto Urbina, Annalise Basso, Steven Ogg, Rowan Blanchard, Tom Lipinski, Archie Panjabi, Mike O’Malley
Duração: 46 min.