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Crítica | Adão e Eva e Pai Contra Mãe, de Machado de Assis

Uma piada com o Padroado e o pesar da escravidão.

por Davi Lima
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Eis aqui um compilado sobre dois conto do escritor brasileiro Machado de Assis. O primeiro chamado Adão e Eva, uma grande piada provocativa, no estilo irônico e fantasioso de A Igreja do Diabo. O segundo, não publicado na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, se chama Pai Contra Mãe, uma obra importantíssima para formar consciência histórica sobre o racismo e a escravidão no Brasil. Seguindo a técnica de Machado, a junção desses dois contos é uma verdadeiro reversão narrativa, da piada ao pesaroso drama.

Adão e Eva

Quando se lê vários contos do Machado de Assis, não são necessários estudos literários para se perceber a capacidade do escritor em criar narrativas prontas para reversões e ironias que captam o espectador. Dentro dessa “fórmula” de qualidade, um estilo próprio, Adão e Eva é um conto que entrega o pragmático e o diferencial como uma cobra que come o próprio rabo. Como de praxe, esse texto publicado na Gazeta do Rio de Janeiro interage com a realidade do tempo do escritor, em que a verossimilhança se aplica à quebra do Padroado durante o Império de Dom Pedro II, mesmo que a data da história seja do século XVIII. Diante dessa cisão, Machado, nesse conto, se mostra embriagado pela comédia que isso pode gerar, usando nada mais nada menos que a história de Gênesis da Bíblia para explorar tanto a capacidade do leitor de estar inteirado com a famosa narrativa, como expor as inversões e ironias como a própria reinterpretação machadiana da Queda do Homem.

Diante da conversa numa festa entre um frei, uma “senhora dos doces” e um juiz-de-fora, temos também  as pessoas ao redor deles que ouviam principalmente a história de juiz, que negava o Gênesis clássico. Entram aí dois fatores que se contradizem, embora a proposta seja para que se complementem , o que não acontece pela forma mais explícita com que Machado apresenta suas técnicas narrativas. O primeiro fator é a aceitação da história do juiz-de-fora sobre a  criação do mundo pelo Tinhoso, vulgo Diabo, e ajeitada por Deus. Abraçando uma suspensão de descrença, assim como fez em A Igreja do Diabo, o realismo machadiano é invadido pela fantasia irônica a cada palavra bem reconduzida da literalidade do texto bíblico. Machado, que sabe de teologia, aplica-a plenamente na comédia, mesmo quando a narração do conto, focada nas ações, pareça um suspense. E aí é que entra o segundo fator, positivo, mas que não harmoniza com o primeiro.

Se a galhofa é bem estabelecida, mesmo com a base realista, o suspense focado na artimanha do Tinhoso e o que a cobra vai fazer, não é apenas uma definição categórica da inversão como o perigo da mudança de curso narrativo se embola com o humor exposto desde juiz-de-fora começar sua história do Gênesis. Esse segundo fator do suspense é positivo individualmente por lembrar a investigação que o historiador Ginzburg produziu acerca das leituras do protagonista Menocchio, em seu livro O Queijo e os Vermes . A capacidade de reinterpretação das várias leituras por um ponto de vista religioso é tão criativo ao ponto da chamada Queda, em Gênesis, não acontecer e ser a conclusão aceita pelos convidados, mesmo sendo uma provocação de Machado. Menocchio era tão criativo com isso que foi preso, embora fosse por essas releituras que as pessoas o ouviam. 

No conto, mesmo que a provocação seja evidente, os ouvintes acabam tornando a narração em conforto. Eis aqui um argumento anacrônico, porque a sociedade que lia a Gazeta em toda a sua religiosidade provavelmente se sentiu incomodada. Mas assim como o frei não parece incomodado com a criatividade do juiz-de-fora, um leitor da Gazeta pode apenas aproveitar mais uma ironia bem contada por Machado sobre os eventos mais recentes.

O que torna o conto bom, tirando a qualidade de escrita de Machado é como consegue ser criativo, mesmo que a inversão de Adão e Eva pareça um humor que não tem expectativa para quebrar; é sem dúvida a aplicação do realismo, mesmo quando o escritor se entrega ao universo do Gênesis. A introdução da festa na Bahia e a frase final do texto sobre uma doceira de Minas Gerais, citada por juiz-de-fora – o nome característico do personagem com a cidade mineira parece até uma piada de mal gosto -, coloca o conto mais próximo do leitor que a própria famosa história de  Gênesis para muitos. A piada de Machado sobre o Padroado quebrado, na relação de Dom Pedro com a Igreja Católica, esquematiza: o mal foi criado primeiro. Deus que o consertou em Bem. Ou seja, a inversão teológica do Bem deturpado em mal pelo pecado humano, por mais seja uma ótima história que movimentou a festa, no final, ninguém comeria os doces. Que o Padroado vá em paz.

Várias Histórias (Brasil, 1896)
Autor: Machado de Assis
Publicação original: Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, em 1885.
Edição lida para a crítica: Obra Completa, editora Nova Aguilar, 1994, Vol. II
88 páginas

 

Pai Contra Mãe

Não é novidade que Machado de Assis proporciona uma literatura que retroalimenta a ficção com a realidade histórica, tendo esse conto Pai Contra Mãe conexões com o gênero da crônica pelo alto grau de realismo, aferindo o contexto da escravidão no Brasil. Como foi dito na crítica de Uma Férias, sobre como Machado praticamente tem um gênero próprio de escrita, a introdução em Pai Contra Mãe detalhando a escravidão e os utensílios de tortura para evitar fugas, farras e bebedeiras dos escravizados parece um texto jornal, ou uma crônica, dentro de um conto. Apesar de não ser publicado originalmente na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, o escritor preserva esse teor jornalístico com objetivo claro de crítica velada, ou irônica, à escravidão a partir da narrativa de um pobre livre branco, subserviente ao senhorio.

O artifício literário mais elaborado, e que torna esse conto tão primoroso, são as conexões temáticas não aparentes, postas até mesmo no título. Não se trata de um caçador de escravizados contra uma mulata escravizada fugitiva e sim de um pai pobre contra uma mãe livre. No rol de contos machadianos, este é um dos maiores, exatamente por ter um cuidado temático extenso, podendo-se dividir a história em três partes, em três temas, ou até mesmo em três classes sociais fundamentais . O sistema escravista seria um recorte, juntando-se à história de uma família pobre e da morte de um bebê para o outro sobreviver. Escravidão, pobreza e mortalidade infantil poderiam serem temas de uma redação e a maneira como o pobre livre e o escravizado se sujeitam, oprimidos, ao senhoriorelatam as relações públicas da sociedade imperial.

Logo, o suspense de inversão característico de Machado – que tem ainda maior efeito pelo tamanho curto e ação do conto, especialmente dos machadianos – bem modernos em relação a outros da época – assume um caráter mais melancólico do que surpreendente em ironia, pois é mais extenso e recheado de nuances que direcionam uma crítica ao sistema escravagista quando narra um drama familiar mais central. A provisão da chuva, que evita que o protagonista Cândido abandone o filho, convenientemente entrelaça o outro dia de abandono no mesmo em que ele encontra a fugitiva Arminda, um traço forte dos vetores narrativos que irão trazer para o conto um tom pesaroso até à última frase: “Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração”. Um filho por outro, a morte e a dor compensatória pelo por um homem prender uma mãe, que era uma escravizada. Como os autores Alexandre Pilati, Ana Laura dos Reis Corrêa e Deane Maria Fonsêca de Castro e Costa dizem no texto Porque dinheiro também dói‘ – Machado contista e as astúcias mercantis da escravidão: “A crônica histórica é desarmada pela ficção na mesma medida em que, a partir dela, a ficção pode se armar com potência renovada”

Pai Contra Mãe é tanto um receptáculo de consciência histórica quanto um drama pesaroso. Assim como outros contos machadianos do livro Relíquias da Casa Velha, são bem mais melancólicos em seus finais. As ironias ainda estão presentes, seja no nome do protagonista, Cândido, seja em outros termos que nominalmente criam antíteses temáticas, como uma Rua da Ajuda e o nome da esposa Clara – quando se compara a situação da pobre e da escravizada. Mas sem dúvida, Machado de Assis se aproxima da crônica de maneira assertiva, no intento de delatar bem como as dores da escravidão, da Máscara de Flandres até o aborto, são ainda mais acentuadas numa sociedade injusta, pobre e desigual. São dores compartilhadas, afinal, até mesmo numa vingança de um filho por outro, como o pecado da humanidade.

Relíquias da Casa Velha (Brasil, 1906)
Autor: Machado de Assis
Publicação original: na coletânea Relíquias da Casa Velha, em 1906.
Edição lida para a crítica: A Cartomante e Outros Contos, editora Moderna, 3ª edição, 2013.
88 páginas

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