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Crítica | Spencer

A tradição sufocando a vida.

por Ritter Fan
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Creio só ser possível realmente entender a escalação de Kristen Stewart, atriz americana, para viver uma personagem da história recente que é fundamentalmente britânica, como parte de uma sutil escolha artística de Pablo Larraín para construir um longa-metragem que carrega consigo uma fina ironia, quase resvalando na sátira, ainda que essa seja uma camada muito bem enterrada nas profundezas do triste, claustrofóbico, militarístico e doentio final de semana natalino de Lady Diana Spencer, em 1991, na propriedade real de Sandringham, próximo ao local onde vivera sua infância. E com isso eu não quero de forma algum dizer que Spencer é uma sátira, mas sim que o cineasta chileno parece ter querido oferecer mais essa possibilidade interpretativa a uma situação terrível de uma icônica e trágica personagem que povoa o imaginário popular do mundo todo.

Stewart, que está excelente no papel – ainda que eu tenha que ter feito um esforço hercúleo para não traçar paralelos com a Diana mais realista vivida por Emma Corrin na quarta temporada de The Crown, ainda a melhor intepretação da personagem que já vi – compôs uma Lady Diana como uma personagem de fábula, algo que Larraín indica que seu filme é já na abertura. A famosa maneira sussurrante de falar de Diana é amplificada quase ao nível de caricatura pela atriz, que basicamente faz do sussurro a única forma de verbalizar os sentimentos que sua personagem sente, mas que é obrigada a esconder a sete chaves e só revelar de verdade em três situações: quando conversa ou com Maggie (Sally Hawkins em mais um trabalho incrível), a figurinista real ou com Darren McGrady (Sean Harris), o chef real, quando está a sós com os filhos ou quando regurgita comida no banheiro em razão de sua desordem psicológica.

Quando uso a expressão “personagem de fábula”, porém, não quero de forma alguma dar a entender que a Lady Di de Stewart é idealizada, pois não é isso. Uso o termo muito mais como uma forma de alerta, apontando para as fábulas originais, antes de terem sido aguadas ao longo do tempo, em que seus protagonistas nem sempre tinham finais felizes e fofinhos. Além disso, o longa é fundamentalmente construído a partir do ponto de vista de Lady Di e ela carrega em si uma contradição profunda entre ser quem ela é de verdade – afinal, o título do filme e o nome que ela usa ao final, no Kentucky Fried Chicken é Spencer – e ser quem ela precisa ser se quiser continuar a ser parte da realeza britânica. É, portanto, uma fábula de mortal forte, pesada e que lida com a prisão da vontade, com o abafamento do “ser”. Se a Jackie de Natalie Portman, também pelas lentes de Larraín, é uma mulher que passa por cima das adversidades em um momento trágico e crítico de sua vida, a Diana Spencer de Stewart é uma mulher que é lentamente engolida por areia movediça, sem ter muito o que fazer além de apreciar momentos prosaicos e raros de felicidade enquanto afunda.

Toda a abordagem militarística da fita, em uma brilhante escolha estética do diretor, dá o tom para o que vemos desde os segundos iniciais da projeção. Temos a chegada da comida à Sandringham, com caminhões e soldados carregando o que essencialmente são caixas de munição retrofitadas, o controle vigilante e constante do Major Alistair Gregory (Timothy Spall, em um papel delicado e difícil, que anda na fronteira entre a compaixão e o dever) que está ali basicamente para manter a princesa “na linha” e, também, toda a estrutura de horários rígidos, inamovíveis para cada evento, cada refeição no castelo, e isso sem contar com o simbolismo que é toda a sequência de “caça aos faisões” (se aquilo é caçar, eu sou um crítico simpático…) que Di, em um arroubo explosivo, acaba paralisando.

Como fez em Jackie, Larraín usa os figurinos clássicos da princesa para ditar a paleta de cores da fotografia de Claire Mathon (Retrato de uma Jovem em Chamas), aqui toda ela em tons pasteis que funcionam muito bem para transformar Diana naquilo que a família real quer que ela seja, não mais do que um móvel da cada ou um utensílio doméstico que só é acionado quando necessário, permanecendo na obscuridade do fundo de tela quase que o tempo todo. E também como em Jackie, mas com menos veemência, diria, Larraín desafia o espectador com uma trilha sonora composta por Jonny Greenwood (Ataque dos Cães) que existe exclusivamente para tornar toda a experiência ainda mais incômoda e difícil.

Mas o diretor, talvez em razão de um roteiro menos do que ideal por parte de Steven Knight, não consegue ser sutil com simbologias. Toda a estrutura militarística funciona muito bem porque ela está no pano de fundo da obra, como sua real base narrativa e, portanto, mantem-se potente em seu silêncio. O problema está quando Larraín começa a marretar incessantemente outros símbolos conectados. O faisão morto na estrada no começo do filme não poderia permanecer subentendido, talvez porque o filme sofreria acusações de hermetismo ou prepotência. Eis então que tudo ganha uma explicação didática, com o faisão, então, bem obviamente tornando-se uma alegoria para a própria Lady Di, se isso já não fosse óbvio de cara em razão da inteligente escolha de figurinos da atriz quando ela aparece pela primeira vez, em que ela é, basicamente, um faisão humano. E a coisa continua com o colar de pérolas, quase um Macguffin narrativo que é tantas vezes explicado e contextualizado que cansa demais, com o momento catártico na escadaria perigosa de sua antiga “casa” esvaziando-se em razão disso. E o que dizer das cortinas costuradas? Do uso de perspectiva forçada para manter o olhar de Diana sempre de baixo para cima ou de profundidade de campo zero em determinadas sequências como a do primeiro jantar, para mostrar a solidão da protagonista mesmo em meio a uma celebração?

O que resulta daí é que muito da força da atuação de Stewart – novamente, ela está excelente no papel, provavelmente o melhor de sua carreira que não, não se limita a Crepúsculo e que sim, é repleta de outros trabalhos ótimos – e tirada pelo bis in idem que Larraín impõe em cada fotograma. Não bastam as magníficas feições entristecidas de Stewart que nos permitem ver a alma torturada de sua personagem, não bastam os contrastes disso com sua felicidade ao lado dos filhos, não basta ver seus olhos brilharem nas demonstrações de amor sincero que recebe ao longo da fita. Larraín, aparentemente, precisava de muito mais do que isso e acaba entregando uma obra que peca por transformar a sutileza quase caricata – e satírica, como disse – de Stewart em apenas mais uma peça em uma engrenagem repetitiva que acaba afetando a fluidez de seu longa.

Spencer continua sendo um excelente veículo dramático para Kristen Stewart, com todos os elogios à sua atuação sendo mais do que merecidos, especialmente por ela ser a americana vivendo um símbolo britânico, ou seja, a pessoa que vem de fora se meter nos afazeres de um círculo que não a quer, mas o longa acaba sofrendo com um roteiro que corre em círculos em repetições temáticas constantes, só que com novos e supostamente espertos símbolos para ilustrá-las e com Larraín não sabendo muito bem como desvencilhar-se visualmente dessas armadilhas narrativas. Ou, talvez, tudo isso seja proposital, com o próprio filme servindo de alegoria metalinguística para Lady Di, uma mulher sufocada em nome da tradição que, naturalmente, leva a repetições que a impedem de ser ela mesma, ainda que seja possível ter vislumbres da Spencer por trás da princesa.

Spencer (Idem – Reino Unido/Alemanha/EUA/Chile, 2021)
Direção: Pablo Larraín
Roteiro: Steven Knight
Elenco: Kristen Stewart, Kimia Schmidt, Greta Bücker, Timothy Spall, Jack Nielen, Freddie Spry, Jack Farthing, Sean Harris, Sally Hawkins, Stella Gonet, Richard Sammel, Elizabeth Berrington, Amy Manson, James Harkness, John Keogh
Duração: 117 min.

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