To die, to sleep— To sleep, perchance to dream.
Hamlet, Ato III, Cena I
O que exatamente é Estação Onze? Essa foi a pergunta que me assombrou praticamente durante toda a primeira metade da minissérie, pois essa é uma daquelas raras obras que não só é de queima lenta, como mantém um interessante, ainda que por vezes enervante, hermetismo narrativo que exige uma boa dose de paciência do espectador, paciência essa que, digo logo, acaba sendo recompensada quando toda a experiência é devidamente absorvida. E a palavra chave é essa mesmo, paciência, e não porque se trata de uma série “chata”, mas sim porque ela literalmente só realmente diz a que veio quando as peças do quebra-cabeça finalmente começam a se aproximar e, depois, a se encaixar.
Mas é importante também deixar claro – e novamente a pergunta “o que exatamente é Estação Onze?” é aplicável – que a minissérie não é sobre mistérios insolúveis, sobre situações mirabolantes, sobre personagens claramente assim ou assado. Estação Onze só se torna o que acaba sendo depois da soma de suas partes, pois, antes, essas partes são literais peças quase que completamente soltas que propositalmente atrasam a visão do todo que o espectador terá quando a última for encaixada lá no final do 10º episódio.
E o que eu posso falar de uma série assim sem enveredar por spoilers? Bem, a maneira mais fácil de começar é pela sua ambientação, já que a minissérie, adaptada a partir do livro homônimo de Emily St. John Mandel, publicado originalmente em 2014, estabelece uma situação apocalíptica que acaba com quase toda a vida humana na Terra da noite para o dia: uma feroz epidemia de gripe suína que mata 999 pessoas entre cada 1.000. Ela começa exatamente no mesmo dia em que Arthur Leander (Gael García Bernal em uma participação especial) tem um ataque cardíaco na noite de abertura da montagem de Rei Lear, em Chicago, mas a conexão entre eventos é unicamente poética, não literal, não parte de um mistério científico ou mágico ou algo do gênero. E o que segue, daí, é uma costura narrativa que nos leva a diversos momentos temporais, tanto os que antecedem em vários anos a pandemia, tanto os que sucedem o apocalipse, especialmente “20 anos depois”.
Mas Estação Onze não é sobre a pandemia. Não é uma ficção científica para além dessa hipótese distópica que é quase que apenas um chamariz. Seu recorte é muito específico e repousa em uma grande e extremamente plural manifestação humana: as artes. O pontapé inicial se dá durante Rei Lear, mas um dos mais importante elementos de costura narrativa é uma HQ auto publicada por Miranda Carroll (Danielle Deadwyler) que acaba chegando nas mãos da jovem atriz Kirsten (Matilda Lawler), pupila de Arthur e que vê seu mestre e amigo morrer no palco, ficando sozinha em seguida e sendo ajudada, por pura bondade e gentileza, por Jeevan Chaudhary (Himesh Patel), que estava na audiência e toma para si a tarefa de levar a menina para casa. A HQ torna-se a obsessão de Kirsten, obsessão essa que continua 20 anos depois, quando a vemos adulta, agora na forma de Mackenzie Davis, principal atriz da Sinfonia Itinerante, uma trupe dramatúrgica que circula metodicamente a região dos Grandes Lagos fazendo montagens de peças de William Shakespeare, com Hamlet sendo a da vez.
E isso é tudo o que pretendo informar sobre a história, ou seja, que ela é sobre as artes, sobre seu poder de unir a humanidade em um só propósito, de servir como elemento fundamental para a compreensão da natureza humana, inclusive permitindo a reconstrução, o reerguimento da sociedade quando ela é fragmentada por qualquer razão. Sim, ciência e tecnologia são fundamentais para esse mesmo objetivo, mas só as manifestações artísticas são realmente capazes de fazer explodir o potencial humano para o bem, para a generosidade e para a compreensão completa de passado, presente e futuro. Afinal, não foi Albert Einstein que disse que “a criatividade é contagiosa”? Porque é isso que Estação Onze é, uma epidemia artística de esperança que usa um pano de fundo de alarme – e infelizmente muito atual – para lidar com a vida e os pequenos atos de gentileza, de amizade, de amor que deveria pontilhá-la mesmo em seus momentos mais sombrios.
Estruturalmente, como comentei mais acima, a minissérie se vale de diversos momentos temporais, os dois mais importantes deles envolvendo Kirsten em suas duas versões, mas com alguns outros episódios que, inicialmente, parecem quase que completamente desconectados da linha narrativa principal. O “quase” fica por conta das conexões trazidas por Athur Leander – mesmo morto, sua presença é sentida constantemente, inclusive antes de sabermos mais sobre ele, o que é um testamento sobre a qualidade dos roteiros – e pela HQ que tem o nome da série (ou vice-versa). Portanto, é importante perseverar. O que parece estranho e fora de lugar fará perfeito sentido ao final, pois a série desenvolvida por Patrick Somerville não é daquelas que seus mistérios estão nos eventos físicos que vemos acontecer, mas sim em como sua construção narrativa nos faz olhar para nós mesmos, nos faz perceber que, mesmo quando perdemos a esperança, há outros caminhos a serem seguidos, refúgios a serem procurados, um deles, disponível a todos de uma forma ou de outra, sendo a manifestação artística. Isso inclusive justifica, em grande parte, o passo razoavelmente lento da progressão da história e os diversos aparentes desvios que acontecem nesse caminho, por vezes com um vai-e-vem temporal constante demais que talvez pudesse ter sido evitado.
Há, também, uma impressionante harmonia no elenco. Não que as atuações individuais sejam incríveis, de tirar o fôlego, porque não são. A pequena Matilda Lawler e Himesh Patel, especialmente quando juntos, são o destaque, não tenho dúvidas, mas mesmo eles são apenas partes de uma engrenagem completa, que funciona quase sem ruídos, permitindo a completa imersão do espectador. A trupe dramatúrgica é o mais evidente exemplo disso, pois não são necessários mais do que alguns segundos para que compremos sua ideia e sua premissa e acreditemos na infinita jornada deles ao redor dos lagos no centro-norte americano. E o mesmo vale para outro grupo, um que fica principalmente no aeroporto de uma cidadezinha, isolados do restante da humanidade e que, como tudo na série, ganha crescente importância que retroalimenta a narrativa de forma lógica e crível. Mesmo episódios dedicados a um ou dois personagens têm como destaque não aquela ou outra atuação, mas sim como entendemos (ou não, naquele exato momento, algo que acontecerá algumas vezes, novamente exigindo paciência) aquele personagem dentro do todo. São pessoas normais vivendo em situações de limite, mas como pessoas normais, e não como figuras mitológicas ou heroicas que têm a solução em um estalar de dedos.
O que é exatamente é Estação Onze? Uma homenagem às artes, especialmente à dramaturgia, sem dúvida. Estação Onze é quase metalinguística nesse sentido, já que é arte nos fazendo prestar atenção nas artes. Mas isso não é tudo. Estação Onze é uma tocha que ilumina o túnel escuro que por vezes temos que percorrer. Vemos o que está imediatamente à frente e nos reconfortamos com isso, mesmo que, poucos metros além do alcance da luz, tudo seja um breu. Há inegavelmente mais coisas em Estação Onze do que podemos descrever em nossa tentativa de resumi-la. E isso é arte.
Estação Onze (Station Eleven – EUA, de 16 de dezembro de 2021 a 13 de janeiro de 2022)
Criação e desenvolvimento: Patrick Somerville (baseado em romance de Emily St. John Mandel)
Direção: Hiro Murai, Jeremy Podeswa, Helen Shaver, Lucy Tcherniak
Roteiro: Patrick Somerville, Shannon Houston, Nick Cuse, Cord Jefferson, Sarah McCarron, Kim Steele, Will Weggel
Elenco: Mackenzie Davis, Matilda Lawler, Himesh Patel, David Wilmot, Nabhaan Rizwan, Daniel Zovatto, Julian Obradors, Philippine Velge, Lori Petty, Gael García Bernal, Danielle Deadwyler, Caitlin FitzGerald, Andy McQueen, David Cross, Enrico Colantoni, Deborah Cox, Luca Villacis, Prince Amponsah, Dylan Taylor, Joe Pingue, Maxwell McCabe-Lokos, Ajahnis Charley, Milton Barnes, Kate Moyer, Timothy Simons
Duração: 514 min. (10 episódios)