Sir Gawain e o Cavaleiro Verde é um poema apócrifo e originalmente sem título escrito por volta da segunda metade do século XIV cujo autor permanece desconhecido, mas que, ao que tudo indica, é o mesmo que escreveu outros três poemas narrativos religiosos – Pérola, Limpeza e Paciência – e que foram reunidos no único manuscrito hoje sobrevivente (ele/ela é comumente chamado(a) de “Poeta Gawain” ou “Poeta Pérola”). A obra é considerada como uma das mais importantes do chamado Ciclo Arturiano da Matéria Bretranha, que coleciona os mitos e as lendas da Inglaterra, inclusive e especialmente, claro, as Lendas Arturianas hoje tão embrenhadas na cultura popular, e é considerada uma obra-prima poética aliterativa.
Mesmo escrito em inglês médio, posterior à Conquista Normanda, portanto, o manuscrito é incompreensível mesmo para nativos da língua inglesa, já que o autor desconhecido, ao que tudo indica, vivia nas terras centrais do oeste da principal ilha britânica, mantendo dialeto, construção gramatical, estilo e vocabulário, além de medida rítmica, mais insular, digamos assim, longe dos grandes centros urbanos que, à época, já haviam ganhado uma forma mais próxima ao inglês moderno. A aliteração – repetição das sílabas tônicas semelhantes de cada verso – é chave para o poema, portanto, que é composto de 2.530 linhas e 101 estrofes dos mais variados tamanhos, cada uma delas acabando em versos menores e rimados de cinco linhas, mas essa aliteração vem de um estilo que já na época era antigo e os estudiosos hoje o consideram como parte de um renascimento do estilo.
E é por isso que existem diversas versões do poema disponíveis para leitura em inglês, sendo as mais famosas e importantes as de Simon Armitage e J.R.R. Tolkien, este último sendo o autor que escolhi para ler. Tolkien, como todos sabem, além de um autor renomado, foi um filologista, estudioso profundo de línguas ao ponto de famosamente ter criado algumas para seu épico literária da Terra Média. Obviamente que não tenho a menor pretensão ou capacidade de afirmar com conhecimento de causa que seu trabalho de versionamento do poema original para o inglês moderno, mantendo exatamente a mesma estrutura aliterativa que mencionei acima, foi um trabalho hercúleo, mas quero crer que o adjetivo hercúleo nem começa a fazer jus ao que ele produziu, pois o resultado final não só é perfeitamente legível – ele não facilita porém, pelo que a linguagem continua rebuscada, não sendo um inglês “simples” -, como a leitura é extremamente agradável, ficando melhor ainda quando o leitor a faz em voz alta, como costuma ser o caso com aliterações (vai por mim, vale a pena, ainda que minha esposa tenha me olhado estranho algumas vezes durante esse processo…).
SIÞEN þe sege and þe assaut watz sesed at Troye, Þe borȝ brittened and brent to brondeȝ and askez, Þe tulk þat þe trammes of tresoun þer wroȝt Watz tried for his tricherie, þe trewest on erthe: Hit watz Ennias þe athel, and his highe kynde, Þat siþen depreced prouinces, and patrounes bicome Welneȝe of al þe wele in þe west iles. Fro riche Romulus to Rome ricchis hym swyþe, With gret bobbaunce þat burȝe he biges vpon fyrst, And neuenes hit his aune nome, as hit now hat; Tirius to Tuskan and teldes bigynnes, Langaberde in Lumbardie lyftes vp homes, And fer ouer þe French flod Felix Brutus On mony bonkkes ful brode Bretayn he settezwyth wynne, Where werre and wrake and wonder Bi syþez hatz wont þerinne, And oft boþe blysse and blunder Ful skete hatz skyfted synne. |
WHEN the siege and the assault had ceased at Troy, and the fortress fell in flame to firebrands and ashes, the traitor who the contrivance of treason there fashioned was tried for his treachery, the most true upon earth–it was Æneas the noble and his renowned kindred who then laid under them lands, and lords became of well-nigh all the wealth in the Western Isles. When royal Romulus to Rome his road had taken, in great pomp and pride he peopled it first, and named it with his own name that yet now it bears; Tirius went to Tuscany and towns founded, Langaberde in Lombardy uplifted halls, and far over the French flood Felix Brutus on many a broad bank and brae Britain
established full fair, |
Primeira estrofe no original | Primeira estrofe por Tolkien |
Se o inglês original e o versionado vão de extremamente complexo a complexo, a história, por outro lado, não é nada assim. Trata-se de um conto típico de sua época sobre cavalheirismo e honradez, tendo o Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda como pano de fundo e que se vale de artifícios literários também comuns, mais precisamente o desafio mortal e a chamada “troca de presentes” ou de “vitórias” que tem como objetivo testar a índole, honestidade e a moral de determinado personagem. Claro que, em se tratando de uma das Lendas Arturianas, é de se esperar magia e criaturas místicas e isso vem logo no momento em que o desafio é posto, já que ele vem de um misterioso cavaleiro de armadura e pele verdes que, nas festas de Natal, chega para desafiar Arthur ou qualquer um de seus cavaleiros a desferir um golpe nele com qualquer arma desde que a pessoa que desfira o golpe o procure um ano e um dia depois de forma que ele possa desferir um golpe de sua escolha em quem primeiro lhe desferiu o golpe.
Claro que Arthur seria naturalmente aquele a responder ao desafio, mas seu sobrinho Gawain (ou Galvão, em algumas traduções para o português), que se considera o “menos importante” dentre todos os cavaleiros – e possivelmente em razão do nepotismo do rei – toma a frente e o aceita antes que seu tio possa esboçar uma reação, cortando a cabeça do cavaleiro misterioso que, ato contínuo, levanta, pega a cabeça do chão e vai embora em seu cavalo. Começa então a honrosa jornada de Gawain até a Capela Verde, onde deverá deixar que o cavaleiro desfira um golpe nele 366 dias depois. Um dos elementos mais curiosos do poema, porém, é que, apesar de ele ser justamente, em essência, um épico sobre a jornada de autodescoberta de um homem, não há foco algum na jornada em si. Muito ao contrário, o autor avança lindamente no tempo, lidando com as estações e as festividades de cada uma delas, para então chegar ao ponto em que Gawain não pode mais adiar sua procura pelo lugar combinado e ele parte.
Só que mesmo esses poucos dias de viagem não são abordados em detalhe. O autor lista os obstáculos que Gawain enfrenta quase que como se estivesse fazendo uma lista de compras (e não, não tenho nenhuma intenção aqui de diminuir a obra ao afirmar isso) e se concentra apenas em um, quando o cavaleiro quer desesperadamente encontrar um lugar para observar o Natal, chegando a um castelo cujos lordes o acolhem imediatamente. O que segue daí é a tal “troca de presentes”, em que, durante três dias, Gawai e o senhor da casa acordam que cada um entregará ao outro seus “ganhos do dia”, com o lorde saindo para caçar e trazendo de volta animais variados e Gawain permanecendo no castelo e “sofrendo” os avanços da senhora da casa. A repetição narrativa – sem que o autor ou Tolkien – realmente repitam os acontecimentos, o que mantém a história sempre fresca e interessante, cria uma espécie de suspense, em que, a cada vez, Gawain cede um pouco mais à tentação, tendo, no primeiro dia, que entregar como presente um beijo que recebeu da senhora da casa (ele literalmente beija o marido dela), no segundo dois beijos e, no terceiro, três beijos, mas finalmente escondendo um desonroso segredo, isso tudo antes de finalmente cavalgar até a Capela Verde para entregar-se ao desafio do Cavaleiro Verde e, claro, encarar a si mesmo, o que significa entender se ele é mesmo, como originalmente acha, o menos valioso dos Cavaleiros da Távola Redonda.
Há, como é de se esperar, um profundo e constante subtexto católico, com menções diretas a Jesus Cristo, Maria e também ao Velho Testamento, com a história de Adão e Eva e outros mitos, algo que sempre perpassou as Lendas Arturianas, inclusive na mais famosa jornada de todas que é, claro, a busca pelo Santo Graal. Interessantemente, mesmo considerando o quanto a presença feminina é importante nessas lendas – a Dama do Lago, Morgana Le Fay e Gwinevere sendo as mais destacadas -, em Sir Gawain e o Cavaleiro Verde há, ainda, um componente extra, que é a esposa do senhor do castelo em que o cavaleiro se hospeda e o quanto de poder e influência ela exerce sobre Gawain, o que empresta uma pegada que muitos hoje interpretam como feminista e, tenho para mim, ser a leitura correta ainda que o termo, à época, inexistisse, obviamente. Essa é, aliás, umas das razões para o poema ser tão atemporal e ter sobrevivido esses anos todos como parte da infraestrutura narrativa na língua inglesa.
Sir Gawain e o Cavaleiro Verde é, na superfície, mas bem na superfície mesmo, uma aventura cativante, repleta de ação e momentos de tensão, mas o poema épico vai muito além disso e não só fornece uma visão fascinante da Inglaterra medieval, como também uma abordagem refrescante das Lendas Arturianas com foco em personagem em tese menor nas histórias que com os séculos, tornaram-se as mais famosas. Da mesma forma, a abordagem dos mais variados temas caros ao cavalheirismo da época e que em muitos momentos podem ser transplantados para o presente é rica e imponente, com a versão de Tolkien servindo como o perfeito veículo para que a obra ganhasse o destaque moderno que merece.
Sir Gawain e o Cavaleiro Verde (Sir Gawain and the Green Knight – Reino Unido, por volta da segunda metade do século XIV)
Autor: desconhecido (normalmente chamado de “Poeta Gawain” ou “Poeta Pérola”)
Tradutor da versão lida: J.R.R. Tolkien
Editora (da versão lida): William Morrow Paperbacks
Data de publicação (da tradução lida): 27 de julho de 2001
Páginas: 256 (o livro completo, que contém introdução explicativa por Tolkien e outros dois poemas – Pérola e Sr. Orfeu, que se acredita ser do mesmo autor de Sir Gawain e o Cavaleiro Verde)