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Crítica | Saga – Volume Quatro

Problemas no paraíso.

por Ritter Fan
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  • spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos demais volumes.

É consideravelmente raro encontrar, no Ocidente (pois conheço relativamente pouco os do Oriente para afirmar com propriedade), quadrinhos de periodicidade mensal que consigam manter seu altíssimo nível de qualidade por anos a fio. As duas grandes editoras mainstream costumavam emplacar algumas obras com razoável frequência em eras passadas, mas, hoje em dia, não mais. Nas editoras ditas “menores”, a Image Comics provavelmente é a que mais acertos desse nível tem e, dentre eles, em uma categoria própria, especial, que ainda considero inalcançável, está a ópera espacial simplesmente intitulada Saga, criação de Brian K. Vaughan (roteiro) em parceria com Fiona Staples (arte) que teve sua primeira edição publicada em março de 2012.

Usando a premissa de Romeu e Julieta em uma abordagem ao mesmo tempo pessoal, humana e extremamente ambiciosa que pode ser resumida como “Star Wars somente para adultos”, a dupla criativa costura uma história de amor e aventura de imaginação fértil e comentários sociais precisos, profundos e muito bem trabalhados que, claro, refletem o mundo em que vivemos. Depois de três volumes dedicados ao que podemos definir como uma longa e cuidadosa história de origem que nos apresenta aos personagens e tramas necessárias para criar todo o vasto universo de ficção científica em um processo invejável de world building, ou construção de mundo, o quarto marca uma nova fase, por assim dizer, usando o salto temporal de alguns meses que vimos na última página do Volume Três para trabalhar um outro momento na vida de Alana e Marko, com Hazel, a narradora, já andando, falando e, claro, fazendo manha.

O foco deste arco composto de seis edições é dividido em dois elementos narrativos principais. O primeiro deles diz respeito ao relacionamento dos protagonistas que, como volta e meia acontece na vida real, perde aquele brilho e aparência de perfeição apaixonada e começa a desmoronar. O segundo é parte de um planejamento mais amplo, abordando a realeza mecanizada com cabeça de monitor do planeta-anão Reino Robô, aliado de Landfall, planeta natal de Alana, povoado por seres nativos alados, na interminável guerra contra Wreath, lua de Landfall povoada por seres chifrudos (literalmente) onde Marko nasceu. As histórias, como Vaughan costumeiramente faz na série, andam paralelamente por grande parte do volume, convergindo para um final bombástico que deixa os leitores pendurados em um cliffhanger.

O que logo chama a atenção é como Vaughan e Staples apresentam um novo status quo sem solavancos, com desenvolvimentos naturais e lógicos a partir do que conhecemos dos personagens e de tudo o que ocorreu antes. O casal fugitivo, sua filha, a espectro-babá Izabel e a avó Klara vivem na árvore-foguete agora estacionada no planeta Gardenia, com Marko cuidando de Hazel e Alana trabalhando como atriz na Circuito Aberto, uma trupe de teatro/televisão underground de enorme penetração neste universo. Separados por seus trabalhos, os dois começam a viver vidas mais solitárias, o que leva Marko a se aproximar de uma professora de dança e Alana a sucumbir às drogas, questões que funcionam como a proverbial cunha para afastá-los de pouco a pouco e a criar a primeira grande crise conjugal.

Entendo quem afirma que o que Vaughan escreve não passa de clichê narrativo, mas esse reducionismo é infeliz, pois clichê faz parte da vida – da vida real, quero dizer – e o que realmente interessa, nas artes, é como o clichê é utilizado. E, muito sinceramente, se todo clichê ou tropo narrativo tivesse a qualidade, o finesse e a inteligência que Vaughan imprime em sua magnus opus, o mundo do entretenimento em geral e dos quadrinhos em particular seria muito mais interessante. O que o roteirista faz é inverter a lógica do que vemos no dia-a-dia, colocando a mãe como provedora e o pai como cuidador, mas sem maniqueísmos, sem conflitos artificiais. O que existe é o que a vida nos coloca, com Marko, de um lado, fazendo de tudo para “cansar” Hazel e, de outro, Alana fazendo de tudo para suportar seu emprego, mesmo que este seja um “emprego de sonho” como a Hazel narradora deixa bem claro. A naturalidade como esse lado do relacionamento dos dois é abordada, com a costumeira discussão aberta – e explícita – sobre sexo, o que pode chocar alguns leitores mais pudicos, é um primor e realmente um dos pontos altos da HQ.

Na outra ponta, ou melhor, na segunda história, temos a apresentação de um novo personagem, o plebeu Dengo – brilhantemente desenhado com uma cabeça na forma de uma televisão antiga em preto-e-branco -, faxineiro do castelo real do Reino Robô que mata a esposa do Príncipe Robô IV e sequestra o rebento real com o objetivo de fugir justamente para Gardenia de forma a usar a rede de transmissão da Circuito Aberto para revelar a opressão que grande parte da população de seu planeta sofre nas mãos da realeza e começar uma revolução. Aqui, o que chama atenção é justamente a preocupação de Vaughan em lidar com o abismo socioeconômico com que nos deparamos todos os dias e que fica mais facilmente exemplificado justamente por um planeta de estrutura nobiliárquica em um momento que talvez possamos chamar de pré-Revolução Francesa.

E é a missão de Dengo, que, aliás, se revela como um exímio assassino e estrategista, o que dá a entender que ele tem uma história pregressa complexa, que leva ao retorno de IV, já que o príncipe, avariado depois dos eventos do volume anterior, procurou refúgio na esbórnia sexual do planeta Sextillion, vivendo por meses em completo êxtase da ignorância. Ao ser “consertado” depois do assassinato de sua esposa, ele parte para caçar Dengo, apesar da proibição expressa de seu pai, o Rei Robô (novamente, brilhante representação visual, com um corpo obeso e uma cabeça que é uma enorme televisão moderna, flat, sem tubo de imagem), criando a convergência final da história que o coloca ao lado de Marko.

O quarto volume de Saga é outro ápice narrativo de Vaughan e Staples e um que começa um novo capítulo na épica história de amor proibido pela galáxia. Apesar da elipse temporal, a continuidade é perfeita, assim como são perfeitas as abordagens do relacionamento fragilizado entre os protagonistas e da revolução que Dengo tenta começar ironicamente usando a televisão como seu meio de denúncia. Trata-se de uma leitura sem igual, que mistura prazer, relevância e deslumbramento visual (Staples é absolutamente incrível em seu estilo “simplista”) em um pacote imbatível da Image Comics.

Saga – Volume Quatro (Saga – Volume Four – EUA, 2014)
Contendo:
Saga #19 a 24
Roteiro: Brian K. Vaughan
Arte: Fiona Staples
Letras: Fonografiks
Editora (nos EUA): Image Comics
Data original de publicação: maio a outubro de 2014
Editora (no Brasil): Editora Devir
Data de publicação no Brasil: janeiro de 2017
Páginas: 152

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