Enquanto assistia Uma Mulher Delicada, nono longa-metragem de Robert Bresson, eu não conseguia parar de pensar em Cenas de um Casamento, de Ingmar Bergman. Ambos os filmes tratam de amores falhos e das farsas da instituição do casamento. O divórcio paira o matrimônio como uma libertação, mas também como um temor. E aos poucos vemos um realismo angustiante tomando conta do relacionamento a dois condenado por suas figuras ambíguas e complexas. No entanto, a abordagem realista de Bresson diverge bastante de Bergman, tanto em estilo quanto em discurso, apesar dos temas similares. E isso me deixou muito intrigado.
Veja bem, Bergman procura um realismo bem mais habitual, retratando o cotidiano do seu casal através de diálogos doloridos e discussões calorosas; mais próximo de um melodrama. Mas também trata essa aflição com amor e ternura entre seu casal que ainda tem resquícios de carinho um pelo outro. Bresson assume um caminho formal diferente, quase uma antítese à obra do sueco. Como típico da sua filmografia, a angústia está no silêncio. Há muita sutileza no trabalho de Bergman, mas o cineasta francês é contido ao ponto da emoção se tornar retida ao máximo, algo meio impensável quando pensamos em um matrimônio implodindo.
No entanto, pensando no tipo de arte do Bresson e na narrativa que ele quer criar em Uma Mulher Delicada, é uma linguagem necessária. Baseado no conto Uma Criatura Gentil, de Fiódor Dostoiévski, a adaptação acompanha a história melancólica de Elle (Dominique Sanda), uma jovem que comete suicídio sem explicação logo no começo da fita. A narrativa se desdobra em flashbacks que relembram seu casamento infeliz com o penhorista Luc (Guy Frangin), em um enigmático enredo de memórias que fazem um recorte para explicar o porquê Elle se suicidou. E ao longo desses flashbacks, vemos um relacionamento baseado em subjugação e posse, motivo pelo qual o estilo reprimido e mudo de Bresson se mostra tão certeiro.
E, então, retorno ao que estava falando no começo do texto em relação às abordagens de Bergman e Bresson, explicando porque fiz esse paralelo. Bem, em um primeiro instante, por pura curiosidade de notar dois grandes autores retratando o matrimônio trágico de diferentes maneiras. Mas principalmente para expor meu argumento: Bresson adora transformar o realismo em interpretativo. Ora, mas Cinema é interpretação, não? Sim, mas veja bem, o realismo é, talvez, a forma mais objetiva e acessível para se contar uma história. Um matrimônio em desmoronamento durante uma época machista, então, é extremamente assimilável para o público. E aí entra o gênio de Bresson.
Na minha interpretação, Uma Mulher Delicada é o retrato de um casamento infeliz com diferentes camadas. Há um teor materialista, eu diria com viés de crítica, na construção do matrimônio de Luc e Elle, já que o marido penhorista apenas se preocupa com o comércio e trata sua esposa como um objeto a ser conquistado e mantido em sua posse – não há amor aqui. O fato de Dominique Sanda ser uma modelo na vida real e uma mulher de beleza estonteante é mais um indicativo de que Bresson queria propor essa discussão.
Há, também, o fator da subjugação da mulher em um universo patriarcal. Elle é sempre desejada por outros homens. Quando a vemos no cinema, está cercada por figuras masculinas. Quando chega em casa, na TV está passando corridas automobilísticas e de cavalos – um estereótipo de que é um entretenimento apenas do homem? Claro, mas é um indicativo pensando no período. Aliás, esse mimetismo cultural é forte ao longo da fita, com os personagens passeando em zoológicos e vendo animais presos. Há uma cena emblemática em que Elle explica ao marido sobre igualdade entre animais após visitar um museu. E até uma peça shakespeariana dando pistas da tragédia do suicídio.
Em termos simplórios, Elle seria uma vítima da desigualdade do casamento e da sociedade machista? Bem, não exatamente. Afinal, a personagem tem sua própria ambiguidade, cheia de olhares passivos-agressivos. É delicada, mas também hostil em seu silêncio. Um sintoma da sua realidade? Talvez, mas Elle se mostra mais indecifrável do que uma vítima. O filme nunca cede para suas escolhas, nos deixando em um limbo de interpretação. Elle sai com outros homens, mas não consegue deixar seu marido ou ter um caso. E Luc, da mesma forma, nunca consegue chegar ao extremo da violência doméstica, mas também não entra na sinceridade de que apenas a vê como objeto.
Eu adoro classificar o Cinema de Bresson como um “simples enganoso” justamente por isso. Não há maniqueísmo, respostas fáceis ou interpretações corretas. E ao trazer a maior simplicidade do realismo narrativo e da técnica cinematográfica, Bresson ilude sua audiência em achar que está vendo transparência e habitualidade; ou até mesmo uma narrativa cotidiana e direta em seus temas como o longa de Bergman. O maior exemplo é o próprio suicídio de Elle. Começa como um mistério e termina como um mistério. Mas nessa espiral de emoções dos flashbacks, criamos nossa interpretação da motivação. Seria um ato de sacrifício, libertação ou desespero? Por que a morte e não o divórcio? É difícil encontrar uma resposta correta.
Primeiro filme colorido de Bresson – ainda suave e escurecido -, Uma Mulher Delicada é uma jornada indigesta, de uma maneira intrigante. Ainda acho aquém de outros trabalhos de Bresson, porque o caráter pessoal da obra com o estilo de atuação amador do cineasta me deixa distante de um impacto emocional com o casal – e, por isso, prefiro o filme do Bergman, a título de curiosidade. Mas acredito que a obra de Bresson é mais interessante e reflexiva. O cineasta parece manter o tom pessimista da segunda metade da sua carreira, com um final cético sobre a humanidade, o “matrimônio sagrado” e sua própria fé religiosa – notem as várias cenas que a personagem reflete sobre a cruz de Jesus e, então, escolhe se matar. Um enigma do início ao fim sobre o casamento e a infelicidade, Uma Mulher Delicada abre um leque de interpretações: existencialismo, moralidade, feminismo, pessimismo, etc. E no meio de todo esse subtexto e diferentes visões, o que importa é a suavidade e melancolia com a qual o cineasta retrata a dor de Elle. Enfim, Bresson.
Uma Mulher Delicada (Une femme douce) – França, 1969
Direção: Robert Bresson
Roteiro: Robert Bresson (baseado no no conto Uma Criatura Gentil, de Fiódor Dostoiévski)
Elenco: Dominique Sanda, Guy Frangin, Jeanne Lobre
Duração: 81 min.