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Crítica | Olhos D’Agua, de Conceição Evaristo

A premiada e imponente coletânea de contos de Conceição Evaristo.

por Leonardo Campos
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Mas, afinal, o que são as “escrevivências” que tanto se fala quando lemos, refletimos e debatemos a obra de Conceição Evaristo? Basicamente, é a escrita a partir de um lugar enunciativo que também é o da vivência de quem tem a sua experiência narrada. Neste processo, fronteiras se dissipam e o embaralhamento é inevitável. Memórias se encontram com o processo de tessitura ficcional e o resultado de tudo, geralmente, são experiências arrebatadoras. Ao menos, se falarmos da prosa e poesia da escritora em questão, bastante representativa não apenas da literatura produzida por autores negros no Brasil, mas do campo literário contemporâneo cada vez mais diversificado, mesmo que ainda longe do necessário para alcançarmos a ficção tão sonhada, embasada pela equidade e respeito pelas tradições que estruturam a formação do nosso povo brasileiro, um contingente populacional representado durante eras por Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro, refletido pelos modernistas, realistas, românticos, dentre outros. Uma pergunta, no entanto, se estabelece: onde estiveram os escritores e escritoras afro-brasileiros em seus respectivos lugares de fala, para versar sobre as suas existências?

Com vasta carreira literária, Conceição Evaristo iniciou a sua jornada como escritora nos anos 1990. Publicou contos e poemas nas coletâneas dos Cadernos Negros, escreveu ensaios, artigos, cursou graduação, mestrado e doutorado em Letras, além de ter publicado outras obras voltadas aos temas que permeiam Olhos D’agua, nosso foco nesta análise que é breve, mas pretende ser elucidativa ao apresentar a riqueza do universo desta digníssima representante da literatura brasileira contemporânea. Becos da Memória, Ponciá Vivêncio, Poemas de Recordações e Outros Movimentos e Insubmissas Lágrimas de Mulheres são alguns dos seus livros mais conhecidos, constantemente estudados em programas de pós-graduação, no Ensino Médio, além de atrair uma parte (que deveria ser mais ampla) do grande público consumidor de textos literários no Brasil. Nas palavras da própria autora, muitos querem conhecer a sua biografia, bem como as suas opiniões sobre questões feministas e raciais. Conceição Evaristo é assertiva: “leiam os meus textos”, a “minha biografia contamina a minha escrita”.

É o que podemos observar nas curtas histórias que acompanham a coletânea. O conto que foi para o título, Olhos D’agua, narra a história de uma mãe negra que precisa sustentar os seus filhos, narrativa construída como reflexo da dura realidade enfrentada pela a comunidade afro-brasileira. É a exclusão social estabelecida como uma herança indesejada, mas muitas vezes imposta aos que não gozam dos privilégios de nossa sociedade que insiste na utópica democracia racial. Ao passo que as lembranças vão se espalhando pelo texto, a narradora, uma das sete filhas desta mãe batalhadora, funde as suas memórias com a história e traz para a sua vivência as marcas deixadas pelo passado. Em sua escrita, Conceição Evaristo depõe. E, nos emocionantes relatos, expõe a realidade que não queremos ver, aquilo que está naturalizado em nosso cotidiano, isto é, a fome, a miséria e a falta de políticas públicas mais efetivas para dar conta do que tanto se fala por aí sobre reparação histórica. Militante a todo instante, a tessitura da coletânea não se deixa perder em momento algum, mantendo força e equilíbrio a cada passagem sobre tantos personagens que gravitam ao nosso redor diariamente.

O livro continua com Ana Davenga, trágica história sobre uma mulher que morava na favela e se relacionava com o homem que lhe dá o sobrenome. Entre o presente e lapsos do passado, sabemos que se conheceram numa roda de samba. Em todo ato sexual, Davenga chorava próximo ao gozo. Envolvido na criminalidade, é alvejado pela polícia numa situação conflituosa. O trágico? Ao seu lado estava Ana, também aniquilada, com as mãos na região da barriga como se pudesse proteger o bebê que carregava em seu ventre. Uma cena de violência e dor tão banalizada, mas que ainda impacta na prosa de Conceição Evaristo, turva entre diálogos, pensamentos, indagações de seus personagens, etc. Duzu-Querença é outra trajetória devastadora, conto representativo do que é negado na vida de alguém desde a sua juventude, algo que ecoa no futuro, por meio de lembranças e situações que se repetem o tempo todo. A mendiga que teve passado de abuso e exclusão relembra os seus antepassados, ao traçar um painel de existências que contam uma história que vai, inclusive, além da sua.

Maria, o meu conto de entrada em Olhos D’agua, expõe de maneira simples a sua história, complexa quando dialogamos com os seus desdobramentos também relacionados com tudo aquilo que é negado para mulheres negras em longas travessias subalternas, acossadas por um mundo que as impedem de viver com tranquilidade ou ter esperança de um futuro melhor. Preocupada em levar o que sobrou de um evento na casa onde trabalha como doméstica, a personagem encontra a morte na volta para o seu lar, ao rever um dos pais de seus filhos no ônibus, na posição de assaltante. Por ser a única a ficar de fora da situação opressiva, os passageiros acreditam que ela seja participante e selam um desfecham nada agradável para a figura ficcional que só queria levar um pedaço de melão para seus filhos experimentarem algo novo na regrada dieta cotidiana. Beijo na Face, conto posterior, também retrata uma mulher em situação angustiante, mas pela ótica do medo da separação, haja vista o companheiro de posturas geralmente violentas. É o receio de sofrer, dentro e fora de casa, que permeia a estrutura destes dois contos de destaque na coletânea.

Em Luamanda, bastante irreverente, Conceição Evaristo retrata os amores da vida de uma mulher cheia de experiências sexuais e sentimentais, tendo sempre a lua como satélite norteador de suas ações. O Cooper de Cida, o meu predileto no conjunto, aborda a perspectiva temporal de nosso cotidiano, isto é, a perda de contato com a sua própria realidade, face ao acelerado tempo histórico que vivenciamos, onde as pessoas não conseguem mais gerenciar o tempo e vivem alienadas dentro de suas atividades rotineiras. Cida, em sua vida cronometrada, não observa qualquer sutileza em seu cotidiano agitado, até que num dia qualquer, ao por os pés na areia da praia enquanto fazia a sua caminhada diária, sentiu o mundo diferente e decidiu desacelerar. Dinâmico, o conto reflete a nossa realidade com graça, permitindo a identificação por parte de qualquer pessoa que vive dentro do contexto urbano contemporâneo, direcionado por aplicativos, redes sociais, mobilidade urbana agitada, etc.

As emoções continuam em maior e menor intensidade nos contos seguintes: Di Lixão, sobre um menino que guarda profundo ódio da mãe, aborda um jovem que morre abandonado na rua, como se não tivesse ninguém além dele mesmo para contar; Zaíta Esqueceu De Guardar os Brinquedos reflete a violência urbana numa contemporaneidade perigosa, de balas perdidas e tiroteios que ceifam muitas vidas inocentes; Ei, Ardoca, também trágico, narra a saga de alguém desiludido, que já ouvia falar das coisas do mundo desde que estava na barriga da mãe, figura que passa por uma situação de coerção, mas não se importa, pois havia tomando veneno para morrer no caminho de volta para casa; em Os Amores de Kimbá, descobertas sexuais e homossexualidade atravessam a história com um pacto nada convencional de seus personagens, parte de um triângulo amoroso bastante intenso; Dorvi e Bica são os destaques de A Gente Combinamos de Não Morrer, conto onde a autora nos diz que escrever é uma forma de sangrar, afirmação que a acompanha também fora do livro, ao longo de entrevistas e apresentações sobre a sua vida e obra.

O desfecho traz alguma dose de esperança com Ayoluwa, A Alegria do Nosso Povo, narrativa encantadora sobre uma vila mergulhada em tristeza e solidão, lugar onde não nasciam mais crianças, cenário que se modifica com a gravidez de uma jovem mulher, acontecimento que resgata o desejo de mudança e a esperança adormecida naqueles que diante de tanto caos, precisavam compreender o valor da vida, empreendido por este nascimento que reflete uma escolha sábia de Conceição Evaristo, ao encerrar o conjunto de contos com otimismo, destacando que há ainda algum espaço para acreditarmos em mudanças. Antes de encerrar, não posso deixar de delinear o quão emocionante é também Lumbiá, conto que ao lado de O Cooper de Cida, ocupa posição de destaque e predileção, não apenas pela realidade nua e crua abordada na trajetória também trágica do personagem-título, mas pelo carisma e identificação de um menino com vários pedidos básicos negados em sua vida ainda incipiente, encantado com a figura do menino Jesus num presépio, imagem que lhe transmite alguma associação, objeto de aproximação que leva ao furto e, consequentemente, ao seu final já esperado.

Em suma, um painel de histórias belíssimas, permeadas também por muita tristeza. Assim é a coletânea Olhos D’agua, publicação que conta com 15 contos distribuídos ao longo das 116 páginas de histórias emocionantes, narradas pela prosa melódica de Conceição Evaristo, uma das grandes damas da literatura brasileira contemporânea. No livro, as narrativas curtas ganham como título, em sua maioria, os nomes, sobrenomes ou apelidos de seus personagens, figuras fortes que em linhas gerais, tentam sobreviver diante da selvageria que toma o nosso cenário social atual, espaço de interações ameaçado pela violência constante, seja dos envolvidos na criminalidade ou da costumeira coerção policial que vitima inocentes cotidianamente. Pobreza, vulnerabilidades físicas e psicológicas, desigualdades sociais e outras celeumas conduzem as histórias que abordam as “escrevivências” da autora, uma autêntica crítica da sociedade, sem deixar nada a desejar no que tange aos elementos estéticos esperados de uma obra marcante.

Olhos D’Agua (Brasil, 2014)
Autor: Conceição Evaristo
Editora: Pallas
Páginas: 116

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