Demóstenes – De que te crês indigno? Parece que ainda abrigas algum bom sentimento. Por acaso pertences a uma classe honrada?
Chouriceiro – Não, pelos deuses! Pertenço à canalha!
Demóstenes – Oh, mortal afortunado! De que felizes dotes de governo te dotou a natureza!
Chouriceiro – Não recebi a menor instrução; só sei ler e mal.
Demóstenes – Precisamente a única coisa que te prejudica é saberes ler, ainda que seja mal. Porque o governo popular não pertence aos homens instruídos e de conduta inatacável, mas aos ignorantes e licenciosos.
Os Cavaleiros é uma espécie de “vingança continuada” de Aristófanes contra um poderoso inimigo que tinha na cidade. Tudo começou quando o comediógrafo apresentou a sua segunda peça, Os Babilônios (426 a.C.), que criticava de forma bastante dura a conduta de Atenas durante a Guerra do Peloponeso, e isso a tal ponto que Cléon (um demagogo, político e general ateniense, fortemente envolvido no conflito) processou Aristófanes por “difamar o povo de Atenas na presença de estrangeiros“. No ano seguinte, em Os Acarnianos o poeta criticou a guerra e citou a vontade de expor as coisas terríveis que Cléon fazia contra o povo, proposta que acabou sendo o próprio enredo de Os Cavaleiros. Misto de alegoria e sátira da vida social e política de Atenas durante a guerra, a obra guarda duas grandes diferenças em comparação ao restante da produção de Aristófanes: poucos personagens (a saber: Demóstenes, Nícias, Agorácrito — que é um Chouriceiro –; Cléon — com o apelido de Paflagônio — e Demos — o povo– personificado em um ancião) e concentração da trama em torno de num único personagem.
Já na abertura, vemos Nícias e Demóstenes fugirem de uma casa em Atenas, reclamando de uma surra que receberam de seu mestre Demos por causa de um colega escravo chamado Paflagônio (Cléon). A dupla diz ao público que Cléon conquistou a confiança cega de Demos, e o acusam de fazer mau uso de sua posição privilegiada para fins de extorsão e corrupção. O elemento metalinguístico fica ainda mais evidente quando informam que até aqueles que produziam máscaras tinham medo do tal Paflagônio e não se atreveram a fazer a caricatura do dito rosto para a peça (o que de fato aconteceu, tendo o próprio Aristófanes que assumir o papel de Cléon na primeira apresentação). Começa a longa jornada irônica do autor sobre a administração da Cidade-Estado, utilizando esses personagens como símbolos das instituições, do comportamento típico dos cidadãos atenienses e das pessoas que escolhiam para representá-los.
Este, aliás, é um dos aspectos mais interessantes da peça. O furor argumentativo não está direcionado apenas ao corrupto e astuto Cleón, mas também ao povo, que é inconstante, apaixonado demais (sempre ligado às aparências e procurando validação para as coisas que mais amam), além de ser facilmente enganado e influenciado. É dessa dualidade no caráter e na construção dramática/simbólica dos personagens que Os Cavaleiros ganha a sua riqueza, já que os dois principais caminhos interpretativos podem gerar situações duplamente fortes, reais e atemporais — impossível um leitor brasileiro contemporâneo não substituir os nomes da peça por inúmeras figuras políticas de seu tempo e se espantar com a quantidade de ações proporcionalmente comparáveis entre os vários desmandes políticos que tanto marcaram a nossa História.
A discussão entre o Chouriceiro (alguém do povo que vê a oportunidade de chegar ao poder e passa a agir igual ao seu inimigo, mostrando que “tinha o que era preciso” para ocupar um grande cargo político) e o Paflagônio concentra o maior número de situações engraçadas da peça, muitas delas no sentido de “riso nervoso”, porque as denúncias de crimes contra o poder público e contra a população são grandes. Cléon é acusado de falar na Assembleia do Povo com denúncias falsas, intimidando muitas pessoas; enganar o povo com falsas e impossíveis promessas; aceitar e oferecer subornos; saquear o tesouro do Estado e impedir a negociação da paz com os espartanos, porque estava pessoalmente ganhando bastante com a guerra.
A ignorância do povo (Demos) vai pouco a pouco sendo remediada. Os escravos sofredores e o Coro de Cavaleiros reforçam os muitos problemas possíveis causados por Cléon e chega a um determinado momento em que o acusado nem nega mais. A ironia trágica de tudo isso é que o Chouriceiro precisa descer ao nível de Cleón tanto em palavras quanto em atos, dizendo que roubaria mais ou conseguiria fazer essa ou aquela atitude terrível… tudo porque a “disputa de virtudes” dos primeiros diálogos parece não ter surtido muito efeito. É uma demonstração clara do quanto os crimes se banalizaram e do quanto o povo realmente acreditava que, para assumir um cargo de destaque na cidade, era necessário alguns pré-requisitos como ser comerciante (algo que também vale uma boa análise situacional daquela sociedade) e ser infame.
Ao cabo, porém, há uma reviravolta típica da “vitória e felicidade do herói” na Comédia Antiga, mostrando Demos devolvido à sua juventude, Atenas voltando à sua Idade do Ouro e finalmente conseguindo a paz. O Chouriceiro não era, portanto, um criminoso tal e qual Cléon, mas um oportunista e populista que usou do discurso do inimigo para chegar ao poder e fazer as mudanças que deveriam ser feitas a fim de mudar a sociedade. Isso pelo menos até que o ciclo termine e os Oráculos passem a designar um novo tempo, um novo humor para o povo, um novo interesse coletivo… aquela dança da mudança política que é tão antiga quanto as civilizações humanas.
Os Cavaleiros (Hippeîs / Ἱππεῖς / Ἱππῆς) — Grécia, 424 a.C.
Autor: Aristófanes
Edição lida para esta crítica: Edições 70 (Portugal, 2004)
Tradução: Maria de Fátima Sousa e Silva
142 páginas