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Crítica | Missa da Meia-Noite

Terror com drama ou drama com terror?

por Iann Jeliel
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Missa da Meia-Noite é o segundo projeto em formato de série que o cineasta Mike Flanagan faz em parceria com a Netflix. O primeiro foi a aclamada “antologia das maldições”, que já teve duas temporadas: A Maldição da Residência Hill e A Maldição da Mansão Bly. Particularmente, sou dos que compartilham uma opinião contrária da maioria a respeito dessas temporadas: não gosto de nenhuma das duas. E os motivos são basicamente os mesmos que fazem essa sua nova série – que também veio a ser aclamada de forma parecida – não tão boa assim. Sei que cada obra deve ser analisada por si só, mas preciso trazer um pouco o levantamento das anteriores, considerando o estilo do cineasta, para que possa ser mais visível os argumentos em defesa e/ou contestação dos pontos sobre Missa da Meia-Noite.

O principal motivo mencionado é o fator drama, que, aliás, é apontado como um dos grandes triunfos de Flanagan em todas essas obras. Não que algo do gênero do horror deva ignorar o drama, mas é justamente a impressão contrária, ou seja, quando o drama toma a frente do horror, que vejo como problemática. Estamos em um cenário que chegou a criar um rótulo, denominado “pós-terror”, para encaixar bons filmes terror – leia-se, bons porque tem drama – em outro gênero, fora do que lhe pertence. Hill e Bly pareciam seguir essa crença distorcida de que quanto mais próxima do drama melhor a sua qualidade da narrativa enquanto terror. Discordo frontalmente de tal ideia. O drama potencializa qualquer outro gênero que lhe é vinculado (ação, faroeste, ficção científica…), mas ele só funciona dentro desse gênero se o entrelace vier como consequência da construção do principal.

Exemplificando: para que acreditemos no drama de uma família assombrada por fantasmas, primeiro precisamos comprar que os fantasmas realmente dão medo, logo é necessário antes de explorar o drama, criar uma boa atmosfera sobre a existência ou não deles. A tríade de séries de  Flanagan acredita no inverso, desenvolvendo o drama para depois adentrar ao assombroso. Uma escolha válida, mas que só funciona a depender das prioridades às quais está articulado. Não funcionava para mim, na antologia, porque o desenvolvimento dramático era retroativo, sempre através de flashbacks individuais, núcleo a núcleo, personagem a personagem, que vez ou outra traziam “sustinhos”, mas sem qualquer impacto, porque a história simplesmente não progride. Não havia como elaborar uma atmosfera de terror em estado puro, sem progressão prática de narrativa. Nesse sentido, Flanagan parece ter amadurecido.

Missa da Meia-Noite já faz os dois processos simultâneos. Uma progressão focada em vários dramas, dessa vez, fragmentada em vários núcleos no episódio, que gradualmente vai inserindo elementos sobrenaturais, sejam visuais ou discursivos, que lentamente levam para esse estado de terror. Há um forte caráter literário nessa história, trazida provavelmente pela amizade do diretor com Stephen King. Ele que já trabalhou nas adaptações de Jogo Perigoso e Doutor Sono, compreende bastante a metodologia do escritor e conserva as suas melhores características. O que é feito aqui lembra bastante O Nevoeiro: a estrutura de conto, uma ambientação isolada bem explorada, um problema nas redondezas e um debate bastante detalhado acerca da religiosidade, não só no aspecto do fanatismo, mas confortando um estudo comportamental humano e global da fé (ou falta dela) e suas variadas formas, que se convergem numa mesma busca incessante da crença em algo fantástico maior. Quando esse algo aparece em forma de uma das clássicas figuras do gênero – sem spoilers de qual seria esse monstro –, deturpada em nome angelical, justificando certos “milagres”, tem-se o encaixe da alegoria temática com uma representação imagética assustadora e, assim, a transição perfeita do drama para o horror, consolidada por um grande e satisfatório clímax nos dois últimos episódios.

Antes disso, no entanto, creio que a construção dramática poderia, sim, ter sido mais econômica. Os episódios são muito longos, podendo ser diminuídos em pelo menos trinta minutos, ou, no mínimo, redistribuídos em dez episódios, que o efeito da crescente narrativa não seria perdido. O grande problema de Flanagan é que ele quer ser mais complexo do que consegue ou precisa. Seu estilo, quando surgiu inspirado na escola de James Wan, nunca foi exatamente contemplativo, embora desde o seu primeiro projeto ele possuísse uma câmera calma e bastante efetiva para mergulhar o telespectador na atmosfera de terror. Para o drama e diálogos de entorno, no entanto, era pouca conversa e muita efetividade pela proximidade com os  personagens. De um momento para outro na carreira ele decidiu mudar, tentando extrair o máximo de conteúdo das conversas. Seu texto é inegavelmente rico, mas por muitas vezes repetitivo. Há conversas e monólogos que em três minutos já resolve seu intuito, mas ele acaba por prolongá-lo por dez, quinze minutos. Cansa, fica chata tamanha verborragia que não exatamente acrescenta sempre a densidade desejada, pois o conteúdo só vai ter respaldo e impacto quando refletido mais à frente, nos momentos de horror.

Claro, há prolongamentos que funcionam bem, como boa parte das cenas de missas e o processo “terapêutico” entre Riley (Zach Gilford) e Father Paul (Hamish Linklater) – os personagens disparadamente mais interessantes –, mas isso porque elas têm um caráter essencial nos desdobramentos, já outras nem tanto e são longas do mesmo jeito. Vale destacar negativamente também, quando algumas conversas ganham um caráter mais emotivo, que a condução de Flanagan fica inexplicavelmente brega, com direito a trilhazinha melodramática e tudo. Isso vem desde Sono da Morte, sendo  muito presente nas “Maldições” e ocasionalmente aparecendo aqui, infelizmente, em algumas cenas derradeiras.  O maior exemplo que posso dar nesse sentido é aquela sequência do desfecho da série, literalmente a última sequência. Quem viu sabe. Para mim, quase tira o peso impactante da conclusão, que é satisfatória por respeitar, seguir e executar bem as convenções do terror que lhe foi utilizada, mas ainda assim, termina em gosto amargo, pela falha tentativa em aplicar uma catarse melodramática por cima.

Por ela, dá para ver que o horror ainda é um pano de fundo para o cineasta, o que ainda vejo como ruim, mas ao menos ele está presente de verdade em Missa da Meia-Noite, não sendo engolido pelo “fator seriado” que ao lhe dar tempo de sobra para desenvolver dramas – que em sua filmografia no cinema acaba se resolvendo de maneira mais prática e melhor – o faz esquecer de dar ênfase ao que ele entrega de mais louvável . Espero que isso não aconteça em sua próxima série em parceria com o streaming, que tenha menos momentos tão chatos quanto ir à igreja – brincadeirinha… – e mais horripilantes com os eventos ocorridos no mesmo local.

Missa da Meia-Noite (Midnight Mass | EUA, 24 de setembro de 2021)
Direção: Mike Flanagan
Roteiro: Mike Flanagan, Joyce Sherrí, Teresa Sutherland, James Flanagan, Elan Gale, Jeff Howard, Dani Parker
Elenco: Kate Siegel, Zach Gilford, Kristin Lehman, Samantha Sloyan, Igby Rigney, Rahul Kohli, Annarah Cymone, Annabeth Gish, Alex Essoe, Rahul Abburi, Matt Biedel, Michael Trucco, Crystal Balint, Louis Oliver, Henry Thomas, Hamish Linklater, Andrew Grush, Quinton Boisclair, Robert Longstreet, Ebony Booth, Patricia Drake, John C. MacDonald, Vincent Gale, Tanis Dolman, Pasha Ebrahimi, Ese Atawo, Carla Gugino, Marci T. House, Mike Flanagan
Duração: 7 episódios – 65 minutos em média por episódio – 452 minutos no total

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