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Crítica | Em Casa com Estranhos, Um Estranho em Casa

A moral sincera do faroeste soviético.

por Frederico Franco
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O arquétipo do herói atravessa a história como um todo, desde os primeiros escritos sumérios, passando pelos épicos gregos e encontrando um confortável lugar na modernidade: no cinema clássico. Os clássicos westerns de John Ford dos anos 1940 e 1950, por exemplo, foram responsáveis por inesquecíveis contos de aparente heroísmo e bravura. A difusão do gênero é recorrente ao longo das duas décadas seguintes, passando pelo spaghetti western, comédias e, até mesmo, musicais. Por mais que as tramas clássicas de moralidade tenham sido estabelecidas no princípio do desenvolvimento dos westerns, o padrão não se mantém ao longo da história. Os faroestes de Leone, por exemplo, não se propõem a uma visão maniqueísta de seu mundo fictício; não são histórias sobre bem versus mal, mas sim sobre humano versus humano. O caso soviético não se posiciona tão longe do caso spaghetti. Em casa com estranhos, estranhos em casa não é – permito-me usar, aqui, um vocábulo do microverso de Rohmerum conto moral. Os protagonistas de Mikhalkov não são homens puros, heróis irreversivelmente bons: são, na verdade, indivíduos corrompidos, contraditórios e, sobretudo, imorais.

A tênue linha moral de Em casa com estranhos…não paira apenas pela dinâmica abstrata da narrativa, mas é expressa de modo violento pelo trabalho corporal dos atores em cena. A alma do western de Mikhalkov é, justamente, a relação da presença dos personagens perante a câmera. A intensidade do corpo cênico faz com que espectador passe a desenvolver uma interação quase irracional com aquilo que vê; são sentimentos inexplicáveis que transbordam o reino léxico. O que se vê no filme parece um exercício aplicado da máxima de Stanislavski da união mente-corpo por parte do ator, tendo na figura do diretor um facilitador desse processo. Consumidos por suas intermináveis batalhas morais, Yegor, Alexandr e Andrey passam por uma exaustiva jornada que está refletida em sua fisicalidade. De início, gélidos como estátuas, fortalezas inabaláveis, marchando de modo inerrante, com músculos tensos e um caminhar determinado. O diretor, no entanto, prova-nos que a rigidez inicial é um telhado de vidro, bastando pouco para ser desmanchado. Ao final, mentalmente em frangalhos, os protagonistas não se portam como antes: agora, com o agridoce destino já alcançado, apenas se vê exaustão. Homens ofegantes, destruídos por si próprios e por suas contradições internas. O encontro final entre Yegor e Aleksandr é a comprovação disso; não é uma canônica batalha de destemidos pistoleiros, mas um expurgo de seres cambaleantes que não aguentam mais seu próprio peso. Por mais que o final catártico de reencontro entre amigos seja um sopro de alegria, o sentimento final não é esse. Vemos abraços e sorrisos que passam longe do prazer.

A ambiguidade moral em Mikhalkov não é expressa em seu esquema narrativo, mas através de suas instâncias formais. Lidando com recursos aparentemente contraditórios entre si, o filme parece encontrar nessa fricção uma perfeita harmonia para sua mise en scène. Em casa com estranhos… inicia com um número musical que exalta as conquistas da revolução bolchevique de 1917 e, em um piscar de olhos, somos conduzidos a uma sala de aspecto quase fúnebre, emulando um pesar e desolação de pinturas de Hammershøi ou filmes Jean-Pierre Melville. A opção do trabalho de câmera do diretor também chama a atenção: em certos pontos, um olhar contemplativo, distante, cínico de certa forma; em seguida, a câmera se desprende do tripé e se movimenta como um corpo autônomo pela cena, muitas vezes em direção a um opressor e comovente primeiríssimo primeiro plano. Quando, por exemplo, o personagem de Anatoliy Solonitsyn se vê perante a imagem de Lênin, a opção estética é similar à descrita anteriormente. Vamos do caos à veneração. A trilha musical de Eduard Artemyev também colabora com o forte impacto causado pelo jogo de plano e contraplano entre Solonitsyn e a fotografia do líder da revolução russa.

Apesar de tudo, é curioso pensar que o maior mérito de Mikhalkov é sua posição frente a própria história do cinema: Em casa com estranhos… é um filme que não nega os caminhos trilhados por seu veículo até então. A questão não é reinventar aquilo que já foi feito, mas se apropriar e desenvolver uma articulação própria a partir de pressupostos estudados ao longo dos então quase 80 anos da arte cinematográfica. Durante o filme, percebem-se influências desde a montagem de atrações eisensteiniana, criando choques a partir do conflito entre imagens e sons dissonantes, até momentos dos quais Bazin sentiria orgulho em ver a teoria da montagem proibida aplicada. A partir da segunda metade, tendo no horizonte o gênero dos westerns, é nítida uma influência do movimento neorrealista, com uma imagem “suja”, pouco cuidadosa, explorando a relação do homem com seu entorno, sem nunca deixar de lado características melodramáticas pontuadas pela música de Artemyev. Mikhalkov, dessa forma, compreende sua pequenez em relação a tudo aquilo que veio antes; assim como boa parte dos cinemas pós-nouvelle vagues, a autoria é dada pela qualidade com a qual o diretor expressa as dinâmicas de seu tempo com o passado.

Nikita Mikhalkov dispensa maniqueísmos tanto em seus personagens quanto em sua forma fílmica. Se há uma ideia de uma tênue linha moral entre os protagonistas, sua mise en scène adota uma postura que dialoga abertamente com o conteúdo do filme. A moral, assim como a linguagem cinematográfica, não é um elemento estático, mas dinâmico, como apontam os estudos éticos a respeito do relativismo. Ir além do simplismo “bem” e “mal”, como faz Nietzsche, é, sobretudo, uma ruptura com estruturas dicotômicas. Em casa com estranho…  é, portanto, um exercício similar ao de seus próprios personagens: “bem” e  “mal” não existem, assim como a montagem de atrações não necessariamente anula a montagem proibida. O diretor, através da mão forte de sua própria autoria, assume seu filme a partir do outro, do passado. É impuro, é imoral, mas é sincero. Assume que seu filme é, nada mais, nada menos, do que uma colcha de retalhos de suas próprias referências. 

Em Casa com Estranhos, Um Estranho em Casa (Свой среди чужих, чужой среди своих) – URSS, 1974
Direção: Nikita Mikhalkov
Roteiro: Nikita Mikhalkov, Eduard Volodarsky
Elenco: Yuri Bogatyryov, Nikita Mikhalkov, Sergey Shakurov, Aleksandr Kalyagin, Aleksandr Kaidanovsky, Konstantin Raykin, Aleksandr Porokhovshcikov, Anatoliy Solonitsyn
Duração: 96 min.

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