Beija-me, Idiota (também conhecido por aqui como Beije-me, Idiota), mesmo tendo uma das sequências finais refilmada por Billy Wilder especialmente para a audiência americana, foi condenado publicamente pela ridiculamente autoproclamada Legião Católica da Decência, a primeira vez que isso acontecia desde Boneca de Carne, de 1956. O resultado foi o boicote do longa pela própria United Artists, que o lançou discretamente sob o selo da Lopert Pictures, uma de suas divisões, a reprovação quase universal dos críticos da época por o considerarem “vulgar” e o consequente fracasso de bilheteria que relegou o longa ao esquecimento mesmo considerando a estirada de fantásticas comédias que o cineasta vinha lançando – quase todas em parceria com I.A.L. Diamond – desde Quanto Mais Quente Melhor.
E quase tudo que você, leitor, precisa saber sobre este filme de Wilder relegado à obscuridade para ficar curioso e procurá-lo para ver, caso não o conheça, está no parágrafo acima, sem a menor necessidade de continuar lendo, com apenas uma exceção que revelarei agora: Beija-me, Idiota é o filme mais sexualmente carregado do diretor, muito a frente do segundo lugar. E isso prova, mais uma vez, a versatilidade deste grande cineasta, aparentemente incapaz de colocar filme ruim na lata, independente do gênero e da temática, já que ele sempre procura revestir suas narrativas de uma técnica inimitável, que fez e faz escola, como ele também jamais se furtou de mergulhar a fundo na sátira, mas sem jamais deixá-la escancarada ou esvaziada.
Porque, como tantas outras obras de Wilder antes desta, a sátira dá o tom. Seja Dean Martin como o cantor alcoólatra e mulherengo Dino, ou seja, ele mesmo na vida real, que vai parar na cidadezinha de Clímax (nada discreta a brincadeira, não é?) ou Ray Walston como o professor de piano e compositor frustrado Orville Spooner simbolizando o homem que faz de tudo pelo chamado Sonho Americano, o filme é um tapa na cara da sociedade machista americana da época – e de hoje em dia também, sob certos aspectos – que não economiza na intensidade e na vontade de incomodar, usando o verniz de um hilário roteiro repleto de jogos de palavras, alguns óbvios como o nome da cidade, diversos outros muito inteligentes e discretos que exigem que se veja o filme na língua original e que se entenda os meandros gramaticais, para suavizar o impacto de quem se contentar com a superfície.
Em termos narrativos, o razoavelmente longo filme é dividido em duas partes bem definidas, a primeira delas estabelecendo a premissa, que coloca Spooner, no dia do aniversário de cinco anos de casamento com Zelda (Felicia Farr), hospedando um perdido Dino como parte de um plano, costurado com seu amigo dono de posto de gasolina e cantor/compositor amador Barney Millsap (Cliff Osmond), para vender suas canções encalhadas. Sabedor que Dino não pode passar uma noite sem transar, sob pena de acordar com dor de cabeça, o ciumento Spooner – toda a ciumeira é construída na forma de gags nos primeiros 10 ou 15 minutos em que conhecemos o personagem – dá um jeito de mandar sua esposa embora, “trocando-a” por Polly the Pistol (Kim Novak), garçonete do bar “indecente” The Belly Button e prostituta nas horas vagas, marcando, então, o começo da segunda parte, uma literal “troca de casais” que é precedida de Spooner se autodeclarando um swinger em uma bela jogada de duplo sentido. Em outras palavras, se trocarmos em miúdos, Spooner é literalmente capaz de vender sua esposa para alcançar seu sonho, o que não só resume o filme como deve ter sido, desconfio, o maior ponto de discordância da tal da “Legião” reguladora do que pode ou não em uma obra audiovisual.
Apesar de Martin e Walston conseguirem criar personagens asquerosos, daqueles que queremos pular na tela para socar, mérito tanto deles quanto de Wilder, claro, o verdadeiro destaque fica por conta das mulheres do elenco. Lindíssimas, Farr e Novak parecem apagar o cenário em que transitam, especialmente quando uma começa a “entrar no papel” da outra. Chega a ser melancólico ver Polly tendo o gostinho de uma vida caseira, arrumada e confortável, com Zelda, por seu turno, refestelando-se (na tal cena alterada por Wilder para o público hipocritamente pudico americano) com momentos risqué que, se o espectador souber se transportar para os anos 60, realmente são de arregalar os olhos.
Wilder estabelece uma estrutura que até pode ser acusada de didática (além de vulgar, claro, he, he, he), mas a convergência narrativa que ele faz ao reunir as histórias das duas tão diferentes mulheres que iluminam a fita é um exemplo de como trabalhar um roteiro arriscado (para a época) e potencialmente desconfortável para muitos (mesmo na época atual) sem abandonar a carga sensual e sexual que termina de vez por mostrar o poder que as mulheres são capazes de exercer. Aliás, tenho a mais absoluta certeza de que os membros “julgadores” da Legião Católica da Decência – homens e mulheres – tiveram muitos sonhos molhados com Beija-me, Idiota…
Obs: Como mencionado no início da crítica, há duas versões deste filme, uma para a audiência americana e outra para a europeia. A modificação fica restrita à “cena do trailer” próxima do final que não descreverei aqui para não estragar a experiência. Mas vale procurar as duas versões para fins comparativos, com a europeia, claro, sendo a que foi originalmente pretendida pelo cineasta.
Beija-me, Idiota (Kiss Me, Stupid – EUA, 1964)
Direção: Billy Wilder
Roteiro: Billy Wilder, I.A.L. Diamond (baseado em peça teatral de Anna Bonacci)
Elenco: Ray Walston, Felicia Farr, Dean Martin, Kim Novak, Cliff Osmond, Barbara Pepper, Doro Merande, Howard McNear, Tommy Nolan, Alice Pearce, John Fiedler, Cliff Norton, Mel Blanc, Henry Gibson
Duração: 125 min.