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Crítica | O Enigma de Outro Mundo, de John W. Campbell

por Ritter Fan
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John W. Campbell provavelmente é mais lembrado pelo público em geral por sua novela Who Goes There? que foi adaptada diretamente para o cinema, até agora, nada menos do que quatro vezes, sendo a mais famosa a versão de John Carpenter, de 1981, O Enigma de Outro Mundo, cujo título foi usado na versão mais recente do livro aqui no Brasil e que também utilizo na presente crítica. No entanto, Who Goes There? é praticamente uma anomalia na carreira de autor literário de Campbell, que nunca realmente conseguiu emplacar outra obra. No entanto, isso não o torna menos importante no cenário da literatura de ficção científica, pois ele foi um prolífico editor da Astounding Science Fiction de 1937 até o fim de sua vida em 1971, tendo papel fundamental na produção intelectual de nomes como Isaac Asimov, Arthur C. Clarke, Robert A. Heinlein e Theodore Sturgeon, o que lhe garante uma confortável posição no panteão dos grandes criadores/fomentadores/formadores literários do século XX.

Mas O Enigma de Outro Mundo (a novela) não pode ser esquecido ou minimizado, pois sua influência é sentida até os dias de hoje, em uma daquelas criações que parecem simples depois de publicadas, mas que capturam tão perfeitamente o imaginário popular que chega a ser difícil lembrar de alguma obra de horror e/ou ficção científica que não tenha bebido, nem que seja um pouquinho, desta obra. E não digo de forma alguma que foi Campbell quem “criou” a narrativa de espaço confinado em que o clima de paranoia é amplificado tremendamente por uma ameaça indetectável, já que essa infraestrutura remonta de séculos antes de uma forma ou de outra, mas sim que o autor encapsulou tão bem o conceito em tão poucas páginas que ele acabou estabelecendo a versão moderna – e, diria, definitiva – desse conceito.

Publicada em 1938 na famosa revista mensal americana Astounding Science Fiction, sob o pseudônimo Don A. Stuart, a história gira em torno da descoberta, por pesquisadores e cientistas isolados em uma base na Antártida, de uma nave e um ser alienígenas completamente congelados há, aparentemente, 20 milhões de anos. Depois de um acidente levar à destruição da nave, o ser de outro mundo é levado até a base para ser descongelado, sob a premissa de que ele não poderia estar vivo, algo que, claro, é logo desbancado, com a criatura passando a insidiosa e paulatinamente “substituir” todos os seres vivos do local, o que gera uma espiral de paranoia entre todos ali, já que não há mais a possibilidade de certeza sobre a humanidade de cada pessoa. Em outras palavras, o colega ao seu lado pode ser um monstro e você não seria capaz de descobrir em razão da habilidades de transformação e absorção de memórias da vítima do alienígena.

A cabeça mais fria nesta situação impossível é a do meteorologista e segundo-em-comando McReady, que logo toma as rédeas da desordem geral e cria protocolos para minimizar a “contaminação” e descobrir uma forma de identificar com exatidão se determinado ser vivo foi ou não substituído pela criatura, logo descobrindo mais habilidades especiais do alienígena e até mesmo seu potencial objetivo final, o que só amplifica o terror que toma conta de todos ali. O clima claustrofóbico e de tensão é palpável, assim como a desconfiança geral de que todo mundo é um potencial monstro, o que testa a resiliência dos homens ali confinados e destrói qualquer traço de esperança ou mesmo de humanidade daqueles que ainda são humanos, em uma estrutura que hoje é lugar-comum na literatura e no audiovisual, , mas que tem seu “nascedouro” moderno neste conto estendido.

Campbell faz uso de terceira pessoa para contar sua história, mas ela não é onisciente, só permitindo que o leitor tenha conhecimento daquilo que McReady e os demais sabem ou descobrem. Como o monstro é uma cópia exata do ser vivo que substitui, por vezes um humano substituído pode ser o foco da narrativa sem que ninguém – nem mesmo o leitor – saiba, o que é um artifício particularmente eficiente para transmitir a atmosfera pesada de desconfiança e paranoia geral que, interessantemente, seria ecoada em escala global, não muito tempo depois, com o começo da chamada Guerra Fria, o que levou o tema do livro, então, a ganhar ainda mais relevância dramática (sua primeira adaptação cinematográfica, em 1951, não foi coincidência). Outro artifício interessante usado pelo autor é manter quase todas as sequências explícitas de horror e ação em off, o que não só “economiza” páginas, como faz a imaginação do leitor funcionar a mil por hora. Isso não quer dizer, porém, que não haja descrições da aparência original do monstro ou do que ele faz ou, melhor ainda, acabou de fazer, mas apenas que isso fica acertadamente em segundo plano para amplificar o medo não exatamente do monstro como monstro, mas sim como o seu amigo que dorme na parte de cima do beliche.

Por outro lado, ao diminuir o foco na ação, Campbell muitas vezes privilegia a verborragia, as explicações das mais variadas teorias sobre a criatura e sobre o que ela pode ou não fazer, incluindo aí as armadilhas criadas por McReady e companhia para pegá-la ou detectar as substituições. Mesmo considerando o quão curta é a novela, essa enfatuação de Campbell com suas próprias ideias mirabolantes cansa um pouco e faz o miolo da história parecer mais arrastado do que deveria ser e isso porque ele sequer se dá ao trabalho (novamente, de maneira acertada, já que não é esse o assunto do livro) de trabalhar as personalidades dos cientistas para além de descrições básicas. Além disso, há uma certa repetição narrativa que é parte do processo de “tentativa e erro” dos personagens, mas que parece mais ser um fruto derivado justamente da discussão das teorias sobre a Coisa e que talvez pudesse ser evitada.

Quando disse que Campbell, muito mais importante como editor do que como autor, tem apenas uma obra que realmente merece destaque, há que se ter em mente que essa “única” obra é nada menos do que O Enigma de Outro Mundo, cujo legado para o horror e a ficção científica é incomensurável. Em outras palavras, temos, aqui, um grande exemplo de que o que realmente importa é a qualidade e não a quantidade. Sua novela de mais de oito décadas continua causando os mesmos efeitos hoje que certamente causou nos leitores dos anos 30, um grande feito, sem dúvida alguma.

Obs: Em 2018, em meio a um material enviado por Campbell, antes de falecer, para a Universidade de Harvard, o pesquisador e biógrafo Alec Nevala-Lee encontrou o que parecia ser a versão original da história, sob o título Frozen Hell, substancialmente mais longa do que a que foi originalmente publicada. Com o objetivo de tornar esse material acessível ao público, uma campanha de financiamento coletivo foi iniciada e obteve enorme sucesso, com o livro sendo publicado em 2019 pela editora Wildside Press. No entanto, é importante salientar que a presente crítica é para a obra originalmente publicada em 1938, não essa versão recentemente achada e disponibilizada.

O Enigma de Outro Mundo (Who Goes There? – EUA, 1938)
Autor: John W. Campbell
Editora original: Street & Smith (Astounding Science Fiction)
Data original de publicação: agosto de 1938
Editora no Brasil: Editora Diário Macabro
Data de publicação no Brasil: 1º de outubro de 2019
Tradução: Nathalia Sorgon Scotuzzi
Páginas: 164

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