Home FilmesCríticas Crítica | Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis (Sem Spoilers)

Crítica | Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis (Sem Spoilers)

por Kevin Rick
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  • Leiam, aqui, nossa crítica com spoilers.

Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis é um filme concebido com alguns fardos e expectativas intensas, e um tanto ingratas, eu diria. Se espera que a obra tenha o impacto social de Pantera Negra em relação a representação asiática, estabeleça o primeiro filme propriamente de origem do MCU desde Capitã Marvel (tanto Viúva Negra quanto as séries do Disney+ trabalham com protagonistas remanescentes e já bem conhecidos), conecte-se organicamente com as loucuras do multiverso acontecendo nos shows, e ainda por cima se firme como uma experiência de blockbuster do gênero super-heróico com a linguagem do cinema chinês de artes marciais e fantasia. Eu mesmo esperava que alguns desses elementos fossem trabalhados na obra, mas a primeira adaptação de Shang-Chi surpreendentemente atinge um equilíbrio complicado: reflete o conflito de novas gerações asiáticas filhos de imigrantes em relação a pressão para sucesso, se forma como um dos mais contidos e independentes longas do MCU, mescla diferentes gêneros e estilos de narrativa do Cinema Chinês, e ainda por cima consegue impactar o progresso do universo compartilhado sem detrair o espaço da história objetiva.

Falando na trama do filme, acompanhamos Shang-Chi (Simu Liu) como filho de Wenwu (Tony Leung), o líder da organização dos Dez Anéis que tem liderado seu grupo terrorista clandestino desde as sombras por séculos graças à mítica arma “Dez Anéis” que ele carrega, lhe dando poderes mágicos de combate e imortalidade. Criado como um assassino desde a infância, Shang-Chi fugiu para os Estados Unidos, onde adotou o nome Shaun, e a carreira simples de manobrista em São Francisco, trabalhando ao lado de sua melhor amiga Katy (Awkwafina). Entre baixas ambições e noites de karaokê, Shang-Chi está vivendo uma vida tranquila. Mas tudo isso muda quando o protagonista é atacado por um grupo de assassinos enviados por seu pai, e ele é forçado a confrontar seu passado.

E a Marvel também confronta seu passado, em uma correção de erros na estereotipização de personagens asiáticos como meros lutadores, principalmente no retrato clichê de Wenwu/Mandarim (o filme até tira sarro com o nome de algumas formas divertidíssimas), inicialmente baseado no personagem racista Fu Manchu. Aliás, Wenwu de Tony Leung é um dos antagonistas mais simpáticos e complexos da Marvel, cujas ações equivocadas (com motivos bem-intencionados) o colocam contra seus filhos, em uma saga mitológica de uma família dilacerada pela imensa potência da perda e do luto. Dessa forma, ainda que mantenha um escopo épico, especialmente no ato final, Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis é construído dramaticamente como uma história de romance trágico, a relação conturbada entre pai e filho e o peso da dor não resolvida.

Aliás, é quase um filme de Leung. A devastação de Wenwu catalisa a ação e permeia cada quadro, transformando o filme em uma tragédia romântica, à la os filmes de Wong Kar-Wai, os quais Leung faz parte. O ator é em partes carismático e ameaçador, entregando cada linha de diálogo com um sorriso malicioso e um olhar amargurado, mantendo um centro de gravidade a seu redor, o qual todas giram e precisam enfrentá-lo ou se juntar a sua jornada melancolicamente irradiante. É sempre surpreendente fazer este tipo de afirmação em um filme da Marvel – Thanos que o diga -, mas em Shang-Chi, a estrela é o vilão.

Apesar disso, Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis é uma grande história de origem para seu personagem-título, pois consegue enquadrar a ameaça familiar de Wenwu em uma dinâmica de expectativas tóxicas e responsabilidades exageradas, algo bastante forte culturalmente para pessoas de ascendência asiática, dando profundidade emocional para que o típico arco de jornada de herói de Shang-Chi seja ressonante com o público. Tal construção dramática recebe alguns ótimos complementos, como a inserção de abandono com a irmã de Shang-Chi, Xialing (Meng’er Zhang), alguns flashbacks maternos com a amável e aconchegante Li (Fala Chen), e até o inesperado humor sóbrio e facilidade cômica adorável com a interação de buddy/renegados entre Liu e Awkwafina.

Mas agora, vamos falar da ação, né? É curioso como a representação chinesa do filme está bem mais composta visualmente na utilização de diferentes gêneros do país central da obra, e até como alia na arte marcial o drama, do que no discurso – é bem menos confrontador culturalmente, como Pantera Negra, por exemplo. Vemos isso em uma luta entre Wenwu e Li que é um balé de amor e atração com a coreografia Qinggong – aquele estilo de andar verticalmente, colocado fantasiosamente em muitos filmes chineses. O diretor Destin Daniel Cretton se respalda na ternura em muitas cenas de luta entre a família protagonista, com alguns close-ups e slow-motions para digerirmos a sensação de cada golpe. Além disso, o longa varia bastante na sua fonte de referência, usando combates mais cômicos (como a já famosa sequência do ônibus) que lembram um pouco obras do Jackie Chan, o mergulho na fantasia do wuxia com um CGI que pinta um épico folclórico em tela, até os combates corporais duros, bastante fluídos e sem cortes. Entre o poderoso impacto e a energia dos anéis literais em ação, a ausência de peso das folhas e da água, e a simbologia de gestos com as mãos abertas em direção a uma harmonia filosófica do Taoísmo, Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis é um dos filmes mais ricos, eletrizantes e exuberantes da Marvel.

Meu único problema com a obra, além da pequena irritação que citei sobre Shang-Chi ser ofuscado, é em relação ao ritmo do longa. A partir da metade da obra, quando a narrativa começa a fazer uma mudança do urbano para o místico, somos bombardeados com exposição de mitologia, deixando alguns blocos arrastados. Mas é um pormenor em mais um acerto da Marvel. Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis é uma mistura vitoriosa da cultura chinesa, especialmente no campo visual, com a fórmula de sucesso da Marvel que evita os clichês e estereótipos asiáticos, enquanto trabalha uma experiência que consegue nos entregar impacto emocional com a tragédia familiar, principalmente com o fantástico e complexo Wenwu, além da ação diversificada que mantém o espectador constantemente extasiado.

Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis (Shang-Chi and the Legend of the Ten Rings) – EUA, 02 de setembro de 2021
Direção: Destin Daniel Cretton
Roteiro: Dave Callaham, Destin Daniel Cretton, Andrew Lanham
Elenco: Simu Liu, Awkwafina, Meng’er Zhang, Fala Chen, Florian Munteanu, Benedict Wong, Michelle Yeoh, Ben Kingsley, Tony Leung, Tim Roth, Ronny Chieng
Duração: 132 min.

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