Muitas vezes é perfeitamente possível captar os pensamentos, posições políticas, religiosas e sociais e outras características de autores de obras literárias apenas lendo seus trabalhos. Robert A. Heinlein é uma das exceções mais intrigantes com que já me deparei, ainda que tenha lido apenas três de seus livros, mas os três considerados como os mais importantes de sua vasta bibliografia. Se Tropas Estelares é uma ode ao militarismo, ao ponto de a Terra no futuro que Heinlein descreve ser uma sociedade organizada a partir de estruturas militares, Um Estranho Numa Terra Estranha, publicado meros dois anos depois, imagina um mundo alterado pela presença de um terráqueo criado em Marte que, com seus poderes, prega a liberdade sexual e de religião e o anti-militarismo ao ponto de o romance ter sido abraçado pela contracultura dos anos 60, transformando-se no que podemos chamar de um dos ícones hippies.
E, se esses opostos são inconciliáveis, Revolta na Lua – título em português de muitas décadas atrás, da Coleção Argonauta, única fonte em nossa língua que encontrei -, publicado de forma serializada nos EUA entre 1965 e 1966 e em forma de livro em 1966, acrescenta outros elementos díspares que tornam ainda mais complexo traçar o perfil de seu autor. Mas isso, muito diferente de ser um problema, mostra muito claramente que ou as pessoas mudam, em um processo natural de amadurecimento ou crescimento e/ou elas conseguem lidar com assuntos diversos de maneira convincente mesmo quando a matéria abordada não reflete os pensamentos pessoais de quem escreve.
Ainda que uma obra literária, como qualquer outra obra autoral, inevitavelmente reflita, de uma forma ou de outra, o “espírito” de seu criador, bater o martelo sobre a pessoa por trás da criação não é uma tarefa trivial e não ajuda aqueles que são os primeiros a acusar Heinlein, só para ficar no caso sob discussão, de “fascista!” só por ter lido Tropas Estelares, da mesma forma que não ajuda categorizá-lo como sexualmente depravado em razão de Um Estranho Numa Terra Estranha ou, chegando ao caso da presente crítica, de anarquista em razão de Revolta na Lua. As pessoas – a maioria delas, quero crer – não são monolíticas e podem ter visões que não se encaixam em apenas uma definição pré-estabelecida, mesmo que muitos estudiosos não se furtem de dizer que Heinlein é um libertário.
Mas voltemos à Revolta na Lua até para construir meu ponto. No livro, o autor lida com um futuro em que a Lua – chamada Luna – foi colonizada fundamentalmente por criminosos condenados, com o satélite da Terra servindo como uma gigantesca penitenciária. No entanto, no momento em que a narrativa acontece – ecoando o que de certa maneira aconteceu de verdade na Austrália – várias gerações já passaram e os habitantes lunares são descendentes desses criminosos originais organizados em uma sociedade com regras próprias que, apesar de não ser exatamente independente da Terra, por haver um terráqueo comandando o satélite, vive de maneira substancialmente independente.
Em decorrência da escassez natural de mulheres, essa sociedade é fundamentalmente matriarcal, com complexos “casamentos em linha” na base da poliandria, ou seja, com uma mulher com vários maridos que vão sendo “substituídos” e “acrescentados” ao longo do tempo. Mesmo que não haja protagonismo feminino no romance, essa estrutura revela uma visão ousada e moderna do autor, que não só coloca a mulher em papel de destaque na sociedade que cria, como deriva toda a hierarquia daí, com as representantes do sexo feminino sendo especialmente reverenciadas e protegidas bem acima do sexo masculino.
Nessa fascinante construção, Heinlein nos apresenta a Manuel “Mannie” Garcia O’Kelly-Davis que, depois de perder o braço em um acidente, torna-se técnico em computador e, nessa capacidade, acaba descobrindo que HOLMES IV (sigla de High-Optional, Logical, Multi-Evaluating Supervisor, Mark IV), supercomputador que controla tudo em Luna, adquiriu consciência, tornando-se curiosíssimo sobre as características humanas. Batizando-o de Mike (uma brincadeira com Mycroft Holmes), Mannie faz literal amizade com a inteligência artificial, testando seus limites, mas mantendo-a em segredo. E é curioso, portanto, como por sugestão do próprio Mike, Mannie participa de uma reunião anti-autoridade que o leva a conhecer a agitadora Wyoming “Wyoh” Knott-Davis que, ato contínuo, o faz reverter a seu antigo professor – e autointitulado anarquista racional – Bernardo de la Paz, levando à construção dos eventos que então justificam o título do livro em português, com Mike passando a ser peça fundamental para tornar possível a revolução que, claro, cobra caro seu preço.
Apesar dos fundamentos libertários e também anarquistas, a própria hierarquização do grupo revoltoso e seus objetivos macro parecem ter sido inspirados na Revolução Bolchevique, o que cria uma “salada” que torna esta obra de Heinlein ainda mais indecifrável em termos políticos do que seria de se esperar, mas não menos fascinante, até porque ele faz de seu livro uma ferina crítica a basicamente todos os sistemas políticos. Com isso, o autor constrói uma atmosfera rica, ainda que por vezes talvez minuciosamente explicada demais, especialmente quando o professor ganha voz, que também pega emprestado da tecnologia que ele mesmo imaginou para o ataque dos insetos à Terra em Tropas Estelares, ou seja, o particularmente eficiente arremesso de “pedras” pelo espaço, o que acrescenta uma leve camada de ação propriamente dita que carrega bem os momentos mais morosos da narrativa.
No final das contas, Revolta na Lua é sobre equilíbrio, sobre o preço que se paga para qualquer coisa que se deseja, algo aplicável ao mais mundano desejo por alguma comida especial até revoluções que mudam o mundo. Pode ser que a obra apenas contribua para tornar as visões políticas e sociais de Heinlein ainda mais confusas se comparamos com suas criações anteriores, mas o autor deixa mais do que evidente que, sem a menor sombra de dúvida, sem a menor chance de ser possível criar uma gambiarra interpretativa para se dizer o contrário, que não há almoço grátis (expressão popularizada justamente por este livro) e isso é algo que, querendo ou não, permeia toda sua bibliografia como uma constante imutável.
Revolta na Lua (The Moon is a Harsh Mistress, EUA – 1965/1966)
Autor: Robert A. Heinlein
Editora original: Quinn Publications (publicação serializada em Worlds of If), G. P. Putnam’s Sons (publicação em forma de livro)
Data original de publicação: dezembro de 1965 a abril de 1966 (em forma serializada); 02 de junho de 1966 (livro)
Editora no Brasil (na verdade, em Portugal): Livros do Brasil (Coleção Argonauta)
Tradução: Eurico Fonseca
Páginas: 398