O início de Crime Negado, o décimo sétimo volume das aventuras da criminóloga Júlia Kendall, me fez perceber como o roteirista Giancarlo Berardi gosta de ser subversivo em circunstâncias menores que mudam o rumo da história. E não digo apenas do gênero detetivesco ou criminal, mas também dentro do molde da série em relação às expectativas dos leitores de certas convenções que estamos acostumados. O autor faz muito isso mudando encadeamentos das tramas investigativas, mas achei interessante notar (apesar de ser algo recorrente em outro volumes) como Berardi e companhia conseguem surpreender com pequenos detalhes inesperados.
Isso acontece logo no início da edição, quando vemos o assassino atacar uma mulher, que é na verdade uma agente policial disfarçada. Esse é o tipo de situação que pega um leitor habituado da Kendall de surpresa, pois normalmente as histórias da criminóloga começam com o delito. Isso já deixa o leitor em um instante de imprevisto – o que é ótimo -, e o texto estica isso para uma sequência de ação também atípica na série, durando 40 páginas. E a edição segue essa cadência de ir quebrando o molde e subvertendo certas escolhas esperadas, com o serial killer sendo pego no primeiro ato da história, apenas para então negar o assassinato de uma das mulheres mortas.
É, talvez, uma das leituras mais gostosas da série, pois está sempre fazendo desvios de curso de parâmetros. Quando o assassino nega o crime, por exemplo, esperamos que esse seja o estopim da investigação de um possível criminoso diferente, o que realmente acontece, só que a narrativa se desenrola em um campo de expor iniquidades humanas e não manter uma trama de pistas. Aliás, quase não há uma investigação propriamente dita, com a descoberta final da Kendall sendo mais um acaso. Berardi está mais interessado em uma história sobre obscenidades e perversões sexuais em uma das suas histórias mais cínicas – o desfecho pinta muito bem esse quadro melancólico de injustiças e pessimismo.
O Crime Negado é uma das histórias mais sórdidas do cânone da criminóloga (até aqui, pelo menos), mas, simultaneamente, um das mais interessantes e imprevisíveis. Berardi vai brincando subversivamente com o que estamos acostumados nas suas tramas, além de mesclar vários bons elementos da série. Temos construção de perfil psicológico – sinto falta disso na série -, uma das melhores dinâmicas entre Kendall e Baxter e todo um bloco depravado que culmina em um de seus finais mais céticos.
Julia – Le avventure di una criminologa #17: Il delitto negato — Itália, fevereiro de 2000
Roteiro: Giancarlo Berardi, Maurizio Mantero, Claudia Salvatori
Arte: Gustavo Trigo, Marco Soldi, Enio
Capa: Marco Soldi
132 páginas