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Crítica | A Espada do Mal

por Kevin Rick
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Histórias de lobos solitários errantes e samurais desonestos desafiando seus clãs normalmente retratam o herói espadachim convencional, o virtuoso homem de honra fiel ao status quo e ao código samurai. Largamente representados no gênero chanbara (ou chambara), que é, resumidamente, sobre luta de espadas, essa imagem impecável do samurai errante começou a ser desconstruída no Cinema nipônico especialmente a partir da década de 60 com uma abordagem mais conscientemente social e realista, mudança esta bastante influenciada pelo neorrealismo italiano e até o cinema noir estadunidense.

A Espada do Mal (péssima, péssima, tradução de título), de Hideo Gosha, é um ótimo exemplo de obra samurai que faz este exercício mais focado em conflitos individuais contra uma cultura opressora do que exaltar o serviço inquestionável ao imperador, a entrega de uma vida pelo clã ou até mesmo glorificar a rebeldia como retrato honroso. Não, Gosha está mais interessado em discutir as implicações sociais da rejeição do indivíduo rebelde, considerado pelo coletivo um animal por abandonar as regras e preceitos impostos por costumes e procedimentos sociais durante o xogunato. Daí o ótimo título original, Kedamono no ken (algo como “espada da besta” ou “espada bestial”), assim como a tradução inglesa mais literal Sword of the Beast, que fazem alusões a como o protagonista do filme, um samurai rebelde em fuga depois de ser enganado para assassinar um ministro do clã em nome de reforma socioeconômica, é uma besta, uma anomalia por declinar as condutas de seu clã.

Perseguido pela filha do falecido líder e seu noivo, bem como por outros samurais do clã, o protagonista Yuuki Gennosuke (Mikijirô Hira) se refugia em um vale proibido, reservado aos garimpeiros de ouro. Lá ele encontra outro samurai de baixo escalão (Go Kato) e sua esposa (Shima Iwashita), secretamente minerando ouro para seu próprio clã falido. A narrativa, que já inicia com a perseguição do clã de Gennosuke, é basicamente uma sucessão de situações de traições, egoísmo e trapaças para demonstrar uma visão cínica da autoridade, e a inserção de todo um bloco relacionado a ouro evidencia o discurso crítico de Gosha sobre como clãs e governadores utilizavam o código samurai como desculpa para ganância. A maneira como Gennosuke, o desonroso e selvagem, é a única linha de honestidade e bondade em meio ao lamaçal de hipocrisia orgulhosa, é o melhor elemento dramatúrgico da obra para produzir o efeito neorrealista no chanbara.

Dessa forma, o roteiro de Gosha e Eizaburo Shiba cria sua narrativa quase que em uma forma de exemplificação visual da contradição irônica que o indivíduo “animal” é na realidade o mais humano. Demonstrando um mundo selvagem e ameaçador, com maridos que abandonam esposas, mulheres sendo estupradas e clãs que atraiçoam os servos mais fiéis e obcecados, A Espada do Mal é uma reprodução cética e trágica da opressão cultural com a violência. A fotografia austera em preto e branco, as sequências ao ar livre e a constante batalha de espadas – fantasticamente coreografadas, aliás – criam o ambiente que parece engolir, subjugar e humilhar o coletivo, enquanto nosso protagonista renegado soa como a última esperança de mudança.

Aliás, essa perspectiva da mudança é delineada através de Gennosuke como uma transformação de valores para os personagens a sua volta. É muito interessante como Gosha lentamente cria arcos para personagens secundários que começam suas rebeldias em pequenos atos, simpatizando-se com a jornada errante do protagonista, ao passo que sofrem de injustiças derivadas do coletivo. Aos poucos, eles se tornam indivíduos, humanos… “bestas” para os parâmetros violentos da obra. É de muitas formas uma metáfora para a mudança japonesa à medida que o xogunato se aproximou do final, terminando uma grande onda de desigualdades na sociedade nipônica.

A Espada do Mal é um dos maiores exemplos de um filme que superficialmente parece um típico chanbara do rebelde solitário, mas que na verdade faz todo um tratamento temático do conflito entre o indivíduo, personificado pelo nobre errante ronin que desiste de tentar ser um membro digno da sociedade desigual, e o coletivo corrupto e violento que demanda a estabilidade social – leia-se desejos daqueles no poder – em detrimento das necessidades pessoais. Tenho alguns problemas em como a caracterização do protagonista vai deixando de estar em conflito (como na questão do seppuku, por exemplo) para ser um personagem estoico, e também na falta de sutileza em alguns diálogos que jogam na cara do espectador que é um filme conscientemente social, mas são pormenores em uma experiência desoladora. É fascinante como Gosha consegue transpassar todo este discurso neorrealista entre fenomenais batalhas com substância moral, a escuridão e vastidão de um ambiente opressor e uma classe de personagens complexos que aprendem seus valores individuais apenas quando veem quem é o verdadeiro animal.

A Espada do Mal (獣の剣, Kedamono no ken) – Japão, 1965
Direção: Hideo Gosha
Roteiro: Hideo Gosha, Eizaburo Shiba
Elenco: Mikijiro Hira, Toshie Kimura, Kantaro Suga, Takeshi Katō, Go Kato, Shima Iwashita, Yōko Mihara, Kunie Tanaka, Eijirō Tōno
Duração: 85 min.

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