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Crítica | Águas do Norte, de Ian McGuire

por Ritter Fan
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Segunda obra de ficção do romancista e acadêmico britânico Ian McGuire, escrita 10 anos após a primeira, Águas do Norte é, também, seu mais conhecido trabalho, talvez por lidar com a fascinante “fronteira” gélida do Ártico em meados do século XIX, período fascinante de grandes expedições humanas – dentre retumbantes fracassos e incríveis sucessos – para mapear terra incognita. Mas o escopo do romance é menor, lidando, na superfície, com um navio baleeiro que sai da Inglaterra em direção à Groelândia para caçar os grandes cetáceos, assim como focas e ursos para extrair óleos combustíveis, gordura, peles, ossos e outros bens cobiçados pelo mercado crescente, mas que representa, na verdade, um recorte do dito mundo civilizado mostrando toda sua decadência e putrefação.

Narrado em terceira pessoa onisciente, o autor inverte a lógica comum e inicia sua história introduzindo o completamente desagradável antagonista Henry Drax, arpoador experiente na véspera de embarcar no Volunteer, navio comandado pelo Capitão Brownlee. Funcionando como um abrupto e violento prelúdio, Drax ganha toda a caracterização necessária para o leitor odiá-lo imediatamente e guardar esse ódio nas surpreendentes poucas vezes em que o marinheiro reaparece na narrativa. É que, em seguida a essa apresentação, McGuire retorna ao padrão literário mais comum, apresentando seu protagonista, o cirurgião irlandês Patrick Sumner que é contratado para ser o médico do navio e cujo ponto de vista passa a ser o dominante ao longo das páginas, inclusive com interessantes flashbacks para a época em que ele era médico do exército britânico na Índia, o que cria o contexto que explica o porquê de ele aceitar emprego em tese muito abaixo de suas capacidades.

O autor tem um estilo completamente sem firulas e floreios, lidando com sua narrativa sem nenhuma sutileza ou delicadeza, o que, ao contrário do que muitos imaginam, convida muito mais problemas do que soluções, especialmente considerando que não se trata de um romance diminuto ou, talvez melhor ainda, uma novela ou conto. A imposição de um grau elevado de objetividade no texto faz com que diversas questões potencialmente interessantes sejam abordadas de maneira simplista, rasa mesmo, a começar pelos detalhes náuticos da expedição de caça e da desconfortável e suja vida em um navio, passando por discussões ambientalistas, já que a obra se passa no momento de transição do de óleo de baleia para o petróleo como combustível, com o “sumiço” dos grandes seres marinhos pela caça desregrada nas décadas anteriores, pelo profundo preconceito contra homossexuais, pela suposta superioridade do homem branco sobre os nativos das terras geladas e pelo embate socioeconômico e hierárquico entre os mais abastados e os que pouco e nada têm.

É como se o autor não tivesse paciência para realmente se debruçar sobre os assuntos que introduz, preferindo fazer um apanhado macro que em momento algum vai no detalhe, o que acaba impedindo que o leitor mergulhe de verdade na história e se compadeça pelos personagens, a não ser aqueles vítimas de violência, e também pelos animais que são dizimados pelos marinheiros. A sensação é que McGuire ou decidiu publicar um rascunho do que poderia ser um romance sensacional como O Terror, de Dan Simmons, ou o que lemos é sua tentativa deliberada de escrever um roteiro cinematográfico ou televisivo disfarçado, como acontece tantas vezes por aí.

Falta substância à história, faltam detalhes que permita ao leitor viver de maneira vicariante a vida dos marinheiros ou enfronhar-se no horror de diversas naturezas que desnudam a natureza humana, falta até mesmo o desenvolvimento de personagens para além de caracterizações que não passam de arquétipos literários, como o médico de bom coração, mas passado complexo ou o homem de coração sombrio, que não resiste a seus impulsos destruidores ou o milionário que quer ficar ainda mais rico nem que para isso tenha que recorrer a ilegalidades. Já vimos tudo isso centenas de vezes antes e McGuire não traz absolutamente nada de novo que torne seu romance mais do que uma leitura descartável, daquelas de um final de semana fora em um lugar particularmente monótono em que só levamos esse livro e não temos alternativa alguma em termos de distrações para passar o tempo que não lê-lo.

Sei que estou sendo talvez mais duro do que o romance realmente mereça, mas tenho para mim que não. Águas do Norte é, exatamente como os professores de ciência nos diziam sobre as características da água, insípido, incolor e inodoro. Reconheço que, em algum lugar ali no meio, há uma angustiante história de podridão humana passada em um período muito interessante da História do Homem e pelo qual tenho particular interesse, mas o que o autor oferece é um esboço do que poderia ser e não uma obra completa, que mereça lugar de destaque na prateleira. Uma pena, pois as discussões que ele propõe, sem jamais sair da superfície, são fascinantes.

Águas do Norte (The North Water – Reino Unido, 2016)
Autor: Ian McGuire
Editora original: Charles Scribner’s Sons
Data original de publicação: 15 de março de 2016
Editora no Brasil: Editora Todavia
Data de publicação no Brasil: 19 de abril de 2021
Tradução: Daniel Galera
Páginas: 304

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