“A intensidade com que sabe escrever e a rara capacidade de vida interior poderão fazer desta jovem escritora um dos valores mais sólidos e, sobretudo, mais originais da nossa literatura, porque esta primeira experiência já é uma nobre realização”
Antonio Candido.
Clarice Lispector era uma estudante de Direito no que é hoje a atual UFRJ quando publicou o seu primeiro romance, aos 23 anos, marcando uma das melhores estreias na história da literatura nacional. Clarice fez algo que, por aqui, nunca havia sido feito dentro da prosa, que é transformar sentidos em palavras. Por isso muito se diz de sua prosa-poética. A partir de então, Clarice renovou toda a literatura brasileira, e por isso, em seu primeiro romance, chamou a atenção do crítico literário mais importante da tradição, Antonio Candido, que escreve, antes mesmo de a crítica notá-la, o famoso ensaio “No Raiar de Clarice Lispector”. Foi assim que ela foi recepcionada quando deu o ar da graça.
Quando da sua estreia, muita gente a elogiou, e outros diziam que ela nunca produziria algo semelhante ao que havia feito em Coração Selvagem, já que um raio não cai repetidas vezes no mesmo lugar. Um equívoco. Quase 20 anos depois, Clarice publica o seu maior romance, mais introspectivo, complexo, profundo e psicológico: A Paixão Segundo G.H. Conhecida pelos seus abismais monólogos interiores e pelo domínio da técnica do fluxo de consciência, Clarice é um ponto de partida fundamental para a recepção do que chamamos de romance moderno aqui no Brasil.
O livro em questão conta com 19 capítulos divididos em duas partes: a primeira dá conta da infância e juventude de Joana; a segunda, sua vida adulta, casada. O enredo é uma viagem através da formação da personagem, por isso ele é tido também como um romance de formação. Entramos definitivamente, em todos os aspectos possíveis, no universo de Joana, tanto interior como exteriormente, e temos acesso a cada pensamento seu. Através do monólogo interior, a gente mergulha dentro de Joana e sentimos a potência do ódio, do amor, da inquietude, da melancolia, do abandono, da liberdade, todos sentimentos que vagam por Joana.
Joana é uma menina inquieta, que mora só com o pai e logo descobrimos que a mãe morreu. Não muito tardar o pai também irá morrer e ela ficará sozinha, abandonada, tendo o desamparo, a ausência e a solidão como um destino. A partir daí, ela vai morar com a tia, que não sabe lidar com sua força e até a chama de víbora. Joana, enfim, se casa, abrindo mais espaço para uma análise profunda de si mesma e de seu entorno. A personagem Joana é tão potente que, quando criança, na escola, perguntou para a professora: “Depois que se é feliz, o que acontece? Ser feliz é para conseguir o quê?”. Com essa pergunta, a criança Joana desmonta uma professora – uma adulta formada! – que parece desfalecer em sua frente.
Esse espírito genioso e maligno só ganha força à medida que ela fica mais velha e esteticamente o livro mergulha junto, produzindo um abismo através das palavras, ao mesmo tempo em que a personagem entra num vão gigantesco. A primeira juventude da personagem é o seu processo de maturação, de tentativa de entender o mundo, de ter o mundo nas mãos e senti-lo. Muitas perguntas e muitas indefinições sobre tudo que existe. Joana sempre está em busca do indizível e não aceita, na maioria das vezes, as respostas dadas, sempre infladas de conformismos e lugares-comuns. A segunda parte do livro é mais madura, e ela traz à luz os problemas mais comuns da intimidade, como o amor, a rejeição, o desprezo, a infidelidade, o casamento, as máscaras sociais, fazendo com que a gente perceba que a personagem Joana busca compreender, no fundo, o humano.
Joana é um universo e conhecemos os mais distintos aspectos da sua personalidade. Em um momento você lerá Joana dizer que teve vontade de vomitar quando abraçou a tia, com uma repulsa odiosa. Mas ela vai além, ela diz que tem a necessidade de amar alguém tão poderoso, e de ser amada por ele, só para ter o prazer de deixá-lo, pisá-lo, repudiá-lo, sem contemplações, só para fazê-lo sofrer. A bondade lhe dava ânsias de vômito. Essa é a víbora fria, que até o marido a teme, mas por ela é seduzido. A experiência-Joana é de um mal-estar constante.
Contudo, em outros momentos, vemos a outra face de Joana: ela é uma mulher que carrega um status crônico de solidão e abandono, em que até a experiência simples do amor é conturbada e machuca. Ela tem vontade de amar, mas não sabe muito bem como, por isso machuca o outro e a si mesma. Ela se diz incapaz de deixar-se amar, não porque não ama este outro, mas porque ela, Joana, não se ama o suficiente para se deixar gostar de algo que realmente aprecia, como num autoflagelo. A experiência do abandono parental logo na primeira infância vai influenciar as suas relações futuras, que estão sempre à beira de alguma ruptura, e é o que acontece com ela: Joana, de novo, é deixada pelo marido e depois pelo amante. Sua solidão é um estado crônico, e de modo inconsciente ela sempre está à procura de suas figuras parentais, que novamente vão desampará-la.
O romance evidencia uma posição superior de Joana em relação ao marido, e ele se encontra a ela subordinado em tudo. No entanto, essa força geniosa de Joana, que às vezes parece construir uma atmosfera intransponível, é, na verdade, uma forma de proteção da personagem: ela tem medo de se mostrar frágil, medo de revelar o quanto precisa do outro e o quanto ela é pobre. Joana, apesar de ser uma mulher forte, de gênio, que rompe com os limites, esconde, por meio de uma casca dura, uma fragilidade interna, como um ovo de galinha, que é firme por fora mas, se num mínimo detalhe cair e quebrar, se mostra em imensa vulnerabilidade por dentro – para usar uma metáfora utilizada pela própria Clarice.
Acho que caracterizar as obras da Clarice como uma agonia não seria exagero, e ela causa esse efeito de estranhamento, chegando sempre muito próximo de um abismo, de um declínio feroz, com intensidade dramática potente. Justamente por se destacar ao conseguir captar as impressões mais profundas e incertas da alma que Clarice é lembrada. As personagens clariceanas são enigmáticas, misteriosas e são todas instigantes. Em Coração Selvagem, constantemente você vai se deparar com o seguinte sintagma: de profundis (das profundezas). É no de-dentro que está a resposta. É no diálogo introspectivo que o romance acontece.
Certamente, em algum nível, estas personagens clariceanas se relacionam com a própria autora e seu modo de ver o mundo, sua cosmovisão – mas seus livros não são, de forma alguma, autobiográficos. Existem inúmeros relatos extremamente curiosos sobre a personalidade da Clarice. Um dia, andando pelas ruas do Rio de Janeiro, parou em frente a um manequim de loja e ficou parada o resto da tarde, por horas, estática, olhando o boneco. O seu próprio psicanalista teve de abandonar o caso, ele dizia que ela era muito angustiada, com muito sofrimento. Penso que uma pessoa com tudo dentro de si, com sede por todos os lados do verso, com uma procura gigantesca pelo coração selvagem da vida, dificilmente não faria uma literatura que fosse tão, e esteticamente, extrema em si mesma, com personagens tão vivos e tão complexos.
Em Perto do Coração Selvagem é possível perceber o drama da linguagem na sua forma mais elevada, levando a um afastamento e às vezes a uma repulsa pela escrita. A experiência de Clarice é esta: é como se você andasse pela praia, em estado de contemplação, sentindo a brisa, molhando os pés, e, repentinamente, você afunda, num breu. São esses os momentos que a crítica costuma chamar de epifania na obra de Clarice, em que a personagem, a partir da imersão em algo – como ver um cego mascar chiclete na rua em Amor; ficar de frente para um búfalo em O búfalo, ou até matar uma barata em A Paixão Segundo G.H -, compreende a essência das coisas, como em uma iluminação. Joana passa por isso, sobretudo, em sua relação com o mar, lugar em que o livro tem a sua primeira queda e o primeiro susto: a percepção de que o pai morrera. Essa é uma informação colocada do nada, sem preparar o leitor, e aí, como eu disse, você despenca.
A verdade é que Perto do Coração Selvagem, de 1943, o livro que vai colocar essa brasileira vinda da Ucrânia em destaque na cena literária, é uma coisa peculiar. Diferente do que muitos poderiam pensar, ela não foi influenciada pela escrita da Virgínia Woolf, muito menos de James Joyce, e muitos acreditavam que ela inspirava seu estilo no escritor inglês, já que o título do livro e a epígrafe que abre a história de Joana, a visceral protagonista do romance, é justamente uma frase do Retrato do Artista Quando Jovem: “Ele estava sozinho, abandonado, perto do coração selvagem da vida“. E ela admitiu que nunca leu Joyce, e a frase, na verdade, foi uma dica de um amigo que tinha lido o manuscrito e falou: “Clarice, tenho o título perfeito para o seu livro”, já que o melancólico protagonista do romance de Joyce, Stephen Dedalus, tem uma trajetória semelhante à de Joana.
Pelos 100 anos de Clarice (2020), não custa lembrar que são poucos os autores que em sua primeira obra conseguem alcançar tal feito e causar tamanho impacto. Num geral, Coração Selvagem aproxima o leitor da experiência sensorial, mostrando as profundezas, as miudezas e as ambivalências dos sentimentos humanos, e com isso coloca-se, indispensavelmente, ao lado da mais alta literatura mundial, mergulhando em campos inacessíveis das angústias humanas.
Perto do Coração Selvagem – Brasil, 1943
Autor: Clarice Lispector
Editora: Rocco
Páginas: 206.