- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas das temporadas anteriores.
Séries como Ray Donovan são verdadeiras anomalias televisivas em tempos modernos. Ela nunca, nem em sua estreia em 2013, teve aquele buzz que normalmente acompanha séries com um elenco de seu naipe e nunca ganhou manchetes de jornal ou mesmo destaque constante em mídias sociais. Mesmo assim, ela perseverou por nada menos do que sete temporadas e, mais ainda, todas elas – eu repito, TODAS ELAS – da mais alta qualidade, com uma uniformidade rara de se encontrar e, ao mesmo tempo, sempre se reinventando. Só para fins de comparação, sua quase contemporânea Homeland, também da Showtime, teve grande destaque pelo menos durante a trinca inicial de temporadas e, mesmo chegando a oito temporadas, não creio ser possível afirmar que todas elas mantiveram o mesmo nível alto de qualidade.
E por Ray Donovan conseguir ser o que foi mesmo sempre voando debaixo do radar do hype, é que a decisão de cancelar a série ao final da 7ª temporada não fez sentido algum e pegou todo mundo de surpresa, sejam seus fãs, seja seu elenco, até porque isso significaria que a série acabaria sem um fim propriamente dito depois de todos esses anos. Raramente reclamo de cancelamentos de séries e mais raramente ainda fico lamentando pelos cantos quando isso acontece, mas, aqui, a decisão veio tão repentinamente e, pior, sem dar chance a David Hollander de usar a própria temporada que se tornou a final para acabar a saga da família Donovan, que realmente fiquei chateado. Por sorte, os fãs quietos da série se manifestaram e a produtora acabou bancando um final na forma de um telefilme não muito tempo depois de seu cancelamento. Menos mal!
Esse preâmbulo é necessário não só para explicar o porquê de eu ter demorado tanto para escrever a crítica da temporada, como também para salientar que seu último ano manteve a qualidade tradicional da série que teve a ação deslocada de Los Angeles para Nova York a partir da 6ª temporada (ou final da 5ª para ser exato), mergulhando em uma fase de estudo das raízes da família Donovan em si como a gênese verdadeira dos muito bem desenvolvidos e abordados problemas psicológicos de seu perturbado e enlutado protagonista (e seus irmãos, claro). Sem perder o ritmo, a 7ª temporada da fase que podemos chamar de “novayorkina” por razões óbvias, parte das mortes dos policiais corruptos empreendidas por Ray Donovan e família na temporada anterior, usando a localização de partes dos corpos no Rio Hudson como gatilho narrativo para envolver quase todo mundo em uma investigação criminal de consequências potencialmente desastrosas.
Apesar de a (obviamente) falsa morte de Mickey ter gerado uma sequência de ação incomum na série e ter servido para usar o patriarca da família como culpado por todas as mortes, encerrando a investigação por um tempo, confesso que esse artifício não me encantou completamente. E a razão não é nem o artifício em si, mas sim seu objetivo maior, que era fazer com que Ray lidasse com a perda do pai. O que isso significaria de verdade para ele, considerando tudo o que ele passou em razão do descaso e, em determinada altura, completo abandono do pai, que o obrigou a amadurecer e a cuidar sozinho de seus irmãos, perdendo a irmã no processo? Sem dúvida, a base para a morte não morrida era nobre, mas, para isso funcionar a contento, ela deveria ter se protraído um pouco mais no tempo, e não ser revelada para Ray logo em seguida, sem sequer dar tempo para qualquer aparência de luto e, consequentemente, o efetivo enfrentamento da situação.
No entanto, esse “problema” nem de longe estraga a experiência, já que David Hollander finalmente nos oferece um verdadeiro retorno à juventude de Ray em Boston, algo que é catalisado pela continuidade de seu envolvimento com o corrupto prefeito Ed Feratti (Zach Grenier outra vez excelente em suas pontas) e a relação conturbada dele com James “Jim” Sullivan (Peter Gerety), patriarca do clã Sullivan, por sua vez intimamente ligado com o clã Donovan, o que leva à série um belo movimento circular de causa e consequência. São os flashbacks que enriquecem sobremaneira a temporada e apontam os holofotes para o que pode ser interpretado como a “origem de Ray Donovan”, o que inclui, claro, a horrível verdade por trás do trágico suicídio de sua irmã Bridget (Emily Richardson).
E é essa linha narrativa – o conflito entre Donovans e Sullivans – que realmente rege a temporada, mesmo que a entrada da família Sullivan no jogo se dê de maneira inusitada e até inédita, ou seja, em um movimento de baixo para cima e não o contrário, que é o mais comum de se ver. O compasso narrativo depois que a tensão é estabelecida lá pelo quarto episódio é excelente, com uma saudável mistura das mais diversas sub-narrativas, especialmente a que envolve Daryl e Mickey atrás do dinheiro de Jim Sullivan, a que coloca Terry diante de sua própria mortalidade e o relacionamento de Ray com Molly (Kerry Condon), com os já mencionados flashbacks que vão aos poucos trazendo um panorama completo para o passado das famílias.
Outro acerto é não esquecer o lado do tratamento psiquiátrico de Ray com o Dr. Arthur Amiot (Alan Alda irresistível) que é mantido como um importante pano de fundo que ecoa as ações do protagonista que ao mesmo tempo quer escapar do inferno familiar em que vive, mas também não consegue se desvencilhar dos grilhões que o prendem a um mundo podre e corrupto. E é importante deixar claro que a série não é maniqueísta em momento algum. Os roteiros não tentam suavizar os pecados de Ray em razão de ele ter sido “forçado” a entrar nessa vida ainda em tenra idade em razão de todas as dificuldades e traumas que ele teve. Ao contrário, mesmo que esse passado dê contexto ao que Ray se tornou, fica evidente, a todo momento, que ele escolheu esse caminho e que todas as mortes que decorram daí – inclusive a do coitado Smitty, esse sim apenas uma vítima em meio a tudo – recaem em seu colo, ainda que sua culpa não seja exclusiva, evidentemente, pois não podemos esquecer de Mickey e a influência de tudo o que faz nessa macabra equação.
O elenco fixo é novamente espetacular, com destaques para Liev Schreiber e Jon Voight, evidentemente, mas também para Eddie Marsan, Dash Mihok e Pooch Hall, além de Kerris Dorsey, que finalmente encontra o tom de sua Bridget, e, claro, a sempre hilária Sandy Martin. A qualidade do trabalho desses atores, aliás, é um testamento da qualidade da série como um todo. O núcleo da família Donovan é formado de pessoas com passado semelhantes, mas que são muito diferentes e cada um dos atores consegue ao mesmo tempo criar uma conexão forte com os demais, da mesma maneira que, em seus dramas particulares, também conseguem se destacar. Poucos elencos conseguem feitos semelhantes ou mesmo têm oportunidade para tanto e é uma pena que o de Ray Donovan tenha sido repetidas vezes esquecido nas premiações.
Ray Donovan chega à sua última temporada de cabeça erguida, mantendo sua clássica e quase imbatível qualidade intacta, mesmo que a série jamais tenha tido o destaque que verdadeiramente perante o público em geral. Quem sabe agora, que ela acabou, ela não consegue esgueirar-se em um nicho também raro de obras que são redescobertas com o tempo? Seria certamente merecido!
Ray Donovan – 7ª Temporada (Idem, EUA – 17 de novembro de 2019 a 19 de janeiro de 2020)
Criação: Ann Biderman
Showrunner: David Hollander
Direção: Joshua Marston, Nick Gomez, Tucker Gates, Dash Mihok, John Dahl, Kyra Sedgwick, Ed Bianchi, David Hollander
Roteiro: David Hollander, Joshua Marston, David Bar Katz, Tanya Barfield, Laura Marks, Jim Leonard, Kelly Wiles, Liev Schreiber
Elenco: Liev Schreiber, Jon Voight, Eddie Marsan, Dash Mihok, Pooch Hall, Katherine Moennig, Kerris Dorsey, Graham Rogers, Sandy Martin, Zach Grenier, Alan Alda, Chris Tardio, Quincy Tyler Bernstine, Louisa Krause, Michael Esper, Josh Hamilton, Kerry Condon, Clay Hollander, Keren Dukes, Peter Gerety, Kevin Corrigan, Emily Richardson, Bill Heck
Duração: 654 min. (10 episódios)