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Crítica | Canaã, de Graça Aranha

por Leonardo Campos
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Classificado pela história literária brasileira como um romance do pré-modernismo, período conhecido por antecipar a jornada cultural efervescente das décadas seguintes aos primeiros anos do século XX, Canaã é um romance que define a carreira do escritor Graça Aranha em nosso cânone. Se olhado pelo viés dos livros didáticos de literatura disponíveis para a educação básica, por exemplo, o escritor nem pode ser definido como um dos integrantes do circuito de legitimação e poder que engloba os pertencentes ao olimpo dos canonizados brasileiros, espaço reduzido que inclui nomes como Mário de Andrade, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, dentre outros. A exclusão, quando observamos alguns determinados fatos da nossa trajetória literária, advém de questões políticas e “birras” entre escritores numa época muito anterior ao que hoje chamamos de cultura do cancelamento. Ao criticar a Academia Brasileira de Letras e romper com a movimentação modernista que ele próprio incentivou em seus primeiros anos na área, Graça Aranha se tornou, salvaguardadas as devidas proporções, um “maldito”.

A sua presença tímida não pode ser comparada ao projeto de exclusão semelhante ao que ocorreu com Lima Barreto, Luís Gama, Cruz e Souza, por exemplo, reconhecidos postumamente, vitimados pelo racismo que ainda toma de assalto, cotidianamente, a fração alienada da população brasileira que ainda acredita no falacioso mito da democracia racial. O problema aqui, pode ser analisado pelo viés do rompimento com os anseios de quem comandava a “festa” que se tornou o país com os eventos e projetos que a crítica denominou de modernismo, fase bastante produtiva de nossa história cultural, era que ficou marcada pela ousadia na estética e na narratividade que fugia de alguns padrões anteriores e cunhava um novo modo de pensar, fazer, consumir e criticar a literatura e as demais artes de massa que ganhavam força com o advento do cinema, uma manifestação ainda preambular na época.

Publicado em 1902, Canaã nos apresenta a história de Milkau e Lentz, personagens de um romance com alto teor filosófico, focado na construção de não apenas uma tese, mas várias, com debates sobre etnia, colonização, progresso, relações humanas, diferenças culturais, militarismo e opressão feminina. No prefácio de Antonio Arnoni Padro, da UNICAMP, o especialista aponta que o romance não foge do projeto dos modernistas ao deglutir as ressonâncias da cultura estrangeira e substituir por motivos autenticamente conectados com a nossa geografia e história. Ao descobrir que na região uma jovem mulher chamada Guilhermina Lubke tinha sido acusada de matar o seu filho numa situação bastante peculiar, o escritor desenvolveu o perfil e os conflitos da personagem Maria, figura ficcional que surge na história para mudar alguns rumos. A dupla de jovens alemães, por sua vez, é tratada por meio de dualidades. Enquanto Milkau é da calma, Lentz é inquieto. O primeiro é a “pedagogia do amor”, diferente do segundo, uma criatura de pensamentos bélicos e focado na constante afirmação que faz para si mesmo sobre a superioridade da raça alemã, grupo que deveria dominar os nativos e tornar a região uma colônia.

Ambos trabalham cotidianamente, lutam pela melhoria constante de vida, postura que resulta na prosperidade nos negócios e em outras circunstâncias de suas existências. As coisas mudam com a chegada de Maria, personagem que surge vagante, perdida em meio aos maus-tratos que sofria diariamente no relacionamento misógino vigente até ser abandonada. Ela é a catalisadora de algumas transformações e se torna uma figura de existência trágica, pois além de ser acusada erroneamente, tratada como prostituta e julgada de infanticídio após a morte de seu filho, devorado pelos porcos numa cena nunca esquecida, lida enquanto quem vos escreve ainda era adolescente e tinha dado os primeiros passos na cultura da leitura, situação rememorada com horror na releitura para a produção dessa reflexão que você, caro leitor, acompanha. Ao longo das 360 páginas da edição veiculada pela Ática, belíssima em seu projeto editorial com capa de Getúlio Delfin, conhecemos um pouco dos costumes de Porto do Cachoeiro, interior do Espirito Santo, território habitado por pessoas excessivamente conservadoras, alvo para a crítica estabelecida por Graça Aranha em várias passagens, principalmente no sexto capítulo, auge do livro, trecho que pode ser considerado a chave de virada de tom da narrativa.

É quando a obra deflagra a corrupção, outra palavra-chave marcante na jornada desses personagens que não encontram alternativa diferente de ir para “Canaã”. Ao ter se tornado amigo de Joaquim Nabuco, o escritor Graça Aranha ganhou um fiador literário que lhe permitiu ingressar na Academia Brasileira de Letras, associação que precisava de ao menos uma publicação literária para permitir a entrada do autor que alguns anos depois, tal como mencionado anteriormente, provocou o rompimento com a instituição que julgava contraditória ao não se renovar e manter algumas posturas “hipócritas”. Por sua amizade com Nabuco, conheceu Machado de Assis, Olavo Bilac, Visconde de Taunay, dentre outros, referências literárias que marcaram a sua caminhada enquanto figura importante do segmento na época. Escreveu Canaã, seu maior ponto de articulação com o cânone literário brasileiro, mas também produziu teatro, com a peça Malazarte; produziu os contos Imolação e Névoas do Passado; organizou as suas memórias em O Meu Próprio Romance, além de ter proferido a conferência A Emoção Estética na Arte Moderna, na famosa semana de 1922. Por ter convivido com movimentos de ruptura na cultura europeia, trouxe novidades para o Brasil, adaptando-as.

O Brasil, no desenvolvimento do livro, é considerado a nova Canaã, terra da fertilidade, pleno em sua natureza exuberante, local ideal para o estabelecimento da supremacia branca alemã, na visão do conflituoso Lentz. Situado numa época de avanços na industrialização e modernização de um país envolto na cultura do café, o romance traz acontecimentos que refletem o mencionado racismo científico e suas ideias perigosas, oriundas da política na Europa, bem como também faz uma exposição panorâmica dos interesses da elite que cresceu vertiginosamente e ganhou projeção econômica a ponto de ditar normas e comportamentos. Canaã, região conhecida por ser a antiga denominação do território que hoje situa Israel, na concepção Bíblica, é o espaço prometido por Deus ao seu povo, espaço de fartura e estabelecido como terra prometida desde o chamado de Abraão. Aqui, no entanto, a leitura alegórica entrelaça os destinos dos jovens imigrantes alemães que precisam driblar muitos desafios para conseguir ao menos vislumbrar o território que servirá deslocamento diante de tantas adversidades.

Canaã (Brasil, 1902)
Autor: Graça Aranha
Editora: Ática
Páginas: 360

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