Casamento Sangrento possui uma premissa que justifica o meu amor pelo gênero do terror. Inventivamente, mistura batidas clichês de modo a torná-las bem originais dentro do contexto do horror atual, pois resgata o espírito slasher oitentista com uma base de torture porn dos anos 2000 dentro de uma recente moda de trazer brincadeiras infantojuvenis para um panorama de jogo mortal, com o adendo de levar seu direcionamento trash para alavancar comentários socialmente relevantes. Com uma base tão sólida de ideias a serem exploradas, a dupla Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett tem uma certa dificuldade de transitar entre as amplas possibilidades, de modo que uma não comprometa o potencial de outra. É como se o lado isolado enquanto sátira enfraquecesse o escapismo de gênero e vice-versa. Fato designado também para outras valências positivas que vão se prejudicando a ponto de a história não atingir seu potencial completo ao final, ainda que cumpra o primordial em cada vertente.
Posso citar um exemplo claro dessa anulação entre pontos positivos quando pegamos toda a construção para o início do pega-pega mortal. Existe um senso de intimidação bastante legítimo antes da instauração da premissa, um certo cinismo de pose superior das figuras patriarcais da família do marido (Alex – Mark O’Brien) com a chegada da nova familiar, o que vai se confirmando quando a suposta tradição ali precisa ser obedecida e chega no azar de acontecer em jogo mortal. Toda essa intimidação inicial deixa o jogo de sobrevivência posterior com uma ótima expectativa pela ampla vulnerabilidade considerada, pois acreditamos no preparo da família para esse tipo de situação e imaginamos a falta de preparo da protagonista (Grace – Samara Weaving) à necessidade da carnificina. Junte a isso a diferença numérica e a falta de aviso prévio a Grace sobre o que de fato vai acontecer com o jogo, e temos uma base completamente incerta de desdobramentos narrativos, que aumentam em tensão quando sabemos que a noiva não vai morrer tão cedo, ou seja, esperamos curiosos a princípio em como ela usará a inteligência para sobreviver a uma primeira investida da família, seja por furtividade, crescente de instinto ou algo remetente.
Acontece que essa base construída do suspense é abandonada por outros dois caminhos também interessantes, até bem colocados disfarçadamente naqueles minutos iniciais, mas talvez não encaixados com o sequenciamento correto na narrativa. O mais óbvio é a sátira, em que toda aquela família se vê completamente despreparada para aquela situação e basicamente só está fazendo o jogo para a continuidade de uma tradição que eles nem se questionam direito se faz ou não sentido. Ao fazerem no decorrer mais longínquo do jogo, o roteiro vai revelando novos comentários bastante significativos sobre a cultura do conservador de obedecer a práticas ultrapassadas só por um princípio teórico de preservação de imagem social. As sacadas humorísticas são muito boas, especialmente as regras colocadas no jogo para remeter a seu caráter antiquado, mas acaba que isso emburrece os personagens e facilita o caminho de Grace no pega-pega, diminuindo o peso e o sentimento de vulnerabilidade e consequentemente a tensão da ameaça a sua vida no decorrer da situação.
Nesse ponto, o filme poderia ter facilmente entrado num território de revanchismo mais direto e gráfico para amplificar o satírico. Até ameaça colocar Grace como uma badass aleatoriamente, mas acaba que fica como mais uma quebra de expectativa, também para gerar humor. O roteiro está mais interessado no segundo caminho que levantei, no caso, certos subarcos dramáticos previamente implementados que tinham que ser resolvidos. Estamos falando da relação da noiva com o marido, que se vê em conflito com aquelas tradições familiares e seu amor pela esposa, e da relação de Alex com seu irmão (Daniel – Adam Brody) e o papel dos dois na continuidade desta tradição. Muitas vezes, o jogo só continua por uma investida de um dos dois contra a própria família, trazendo representativamente um lado motivacional interessante de conflito entre os antagonistas, que são minimamente desenvolvidos fora de suas caricaturas. Por outro lado, ainda que ambos os dramas sejam críveis, eles cessam a crescente de sanguinolência, que acaba introduzida tardiamente no exagero somente por elementos sobrenaturais.
Ou seja, até o terceiro ato, o filme é pautado num realismo um tanto desnecessário, considerando o teor satírico já exposto, o exagero não precisava ser segurado nessa ponta por essa sobrevivência mais verossímil. Há até uma cena muito boa de gore realista no celeiro, mas acaba sendo pouco, diante do que o terceiro ato reservava, quando se larga mão e assume mais o lado trash. Poderia ser uma galhofa assumida bem mais cedo, especialmente considerando a ótima ida para elementos ocultistas despojados, o que facilmente seria uma ponte perfeita para a sátira da obsessão pela tradição, independentemente do seu sentido não anular a periculosidade que a família aparentemente representava à personagem principal no início do jogo de sobrevivência. Quando as coisas começam a ficar tensas e o revanchismo verdadeiramente entretivo, o filme acaba e fica com aquele gostinho de quero mais, especialmente diante da força da última piada. No fim, Casamento Sangrento acaba tendo o privilégio de sofrer por ter menos do que oferecia, mesmo sabendo entregar competentemente tudo o que prometeu.
Casamento Sangrento (Ready or Not | EUA, 2019)
Direção: Matt Bettinelli-Olpin, Tyler Gillett
Roteiro: Guy Busick, R. Christopher Murphy
Elenco: Samara Weaving, Adam Brody, Mark O’Brien, Henry Czerny, Andie MacDowell, Melanie Scrofano, Kristian Bruun, Elyse Levesque, Nicky Guadagni, John Ralston, Liam MacDonald
Duração: 95 minutos