Ao final de Além das Estrelas, o agente especial Nathan Never diz ao seu parceiro de ocasião que irá tirar umas férias depois que tudo aquilo passar. Neste arco formado pelas edições Terra Queimada e Os Predadores do Deserto, vemos o que aconteceu durante essas férias e o roteirista Michele Medda não demora nada para nos “entregar o ouro”. Já na primeira página da edição vemos que NN está morrendo no Território, grande espaço territorial desértico, abandonado pelo governo após experimentos tóxicos feitos pelos militares na região, muitos anos antes; além do desestímulo que investidores imobiliários fazem a qualquer tipo de atenção que o Estado possa dar à recuperação natural a à reocupação daquele lugar.
É claro que o autor foi buscar inspiração em diversas fontes da ficção científica para a criação desse enredo, e vejo o presente arco como um dos mais bem ancorados da série até o momento. Aqui presenciamos elementos vindos de Duna (as cenas com a centopeias mutantes são maravilhosas, especialmente no final), de Nausicaä do Vale do Vento (o contraste entre um lugar maravilhoso habitado boas pessoas e o seu ao redor povoado por criaturas perigosas), de Mad Max (com o ambiente contaminado) e de O Ataque dos Vermes Malditos (idem ao comentário sobre as centopeias). E notem que as referências já começam na capa da edição de abertura do arco, que homenageia indiretamente o grande clássico Lawrence da Arábia.
A jornada épica do protagonista ganha aqui uma camada inesperada de ternura, quando ele chega ao povoado religioso de Céu Verde, um verdadeiro oásis em meio ao deserto. A semelhança do que acontece aqui com o enredo de Os Brutos Também Amam é imensa (outra história sci-fi da Bonelli, Terra Perdida, da série Brad Barron, usaria o mesmo filme como inspiração) e isso aliado aos toques de Os Sete Samurais (nesse caso com apenas um homem) deixa o roteiro delicioso de se acompanhar, entrelaçando grande destruição e violência com laços sentimentais criados entre as pessoas e a perspectiva de uma boa vida para esta e para as próximas gerações.
A arte de Esposito Bros é simplesmente perfeita para esse tipo de aventura. Certo elemento cartunesco e a delicadeza dos traços trazem a necessária fofura para alguns blocos (especialmente quando o garotinho está em cena) e recebe uma finalização mais crua nos momentos em que Nathan Never e os amigos que faz em Céu Verde se encontram com os motoqueiros do Território ou com King, o líder ambicioso e narcisista de uma cidade do deserto — o leitor que gosta de western fará aqui uma porção de outras aproximações.
A defesa de uma posição de poder, o choque entre uma visão puramente exploradora e outra que pretende tirar da natureza apenas aquilo que vai consumir (outra dinâmica de faroeste, tendo a visão de mundo dos colonos versus a visão de mundo dos indígenas) fazem de Terra Queimada e Os Predadores do Deserto um arco crítico, atemporal, com eventos que podemos facilmente ver acontecendo no futuro — para diversos tipos de recursos naturais — e que vemos acontecer em todos os lugares no tempo presente. Como toda boa ficção científica, é uma história que fala muito mais sobre o momento em que foi escrita do que necessariamente sobre o que está por vir. O que é algo bastante triste, se a gente parar para pensar. Mas também é algo que gera uma luz de esperança, de possibilidade de mudança para que não cheguemos a tal ponto no futuro.
Nathan Never – Vol. 14 e 15: Terra Queimada e Os Predadores do Deserto (Terra Bruciata, I Predoni del Deserto) — Itália, julho e agosto de 1992
Roteiro: Michele Medda
Arte: Esposito Bros
Capa: Claudio Castellini
200 páginas