Goste ou não, os falsos documentários se estabeleceram como uma curiosa tendência narrativa ao longo da evolução da linguagem cinematográfica e da atual demanda na cultura do entretenimento. Para alguns, é um painel de equívocos responsável por dar vazão ao nosso contexto de notícias falsas e fabricação errônea da notícia e perpetuação de determinados fatos. Para outros, é uma subversiva estratégia de espetacularização do real, refutação da realidade que redefine as fronteiras de realidade do gênero documental e implode alguns discursos hegemônicos. Vidas fora do eixo terrestre, questões sobrenaturais, existência de lobisomens e vampiros, modos de vida bastante exóticos e claro, a suposição acerca de figuras mitológicas tidas como reais, encontradas por seres humanos em contatos nada convencionais. Essa é a tônica do documentário As Sereias – O Corpo Encontrado, filme que brinca com questões do tipo “eu estive lá, eis aqui as comprovações”, material exposto como verdadeiro para o público, deixando a todos confuso em torno da veracidade ou não daquilo que é trabalhado em cena como conteúdo real, neste caso, as sereias, figuras mitológicas que mexem com o imaginário cultural mundial há séculos.
Assim, como sabemos, os falsos-documentários contém fatos supostamente reais, mas que na verdade não condizem com os nossos ideais de realidade. É um gênero que toma de empréstimo as formas narrativas do documentário para expor uma história ficcional subversiva, algo não necessariamente novo, pois Woody Allen e Orson Welles, em Zelig e Guerra dos Mundos, cinema e rádio, respectivamente, flertaram de maneira irônica com essas questões. Em 2012, o cineasta Sid Bennett assumiu o roteiro escrito em parceria com Charlie Foley e Vaibhav Bhatt, equipe produzida pelo Discovery para a composição de As Sereias – O Corpo Encontrado, sucesso de audiência na época de seu lançamento, material que apesar de assumir a sua origem fake no desfecho, por meio de um letreiro minúsculo que quase ninguém viu, irritou bastante alguns espectadores que se sentiram enganados com os desdobramentos das informações manipuladas de maneira a parecer real. Em sua abertura, as instâncias de legitimação são acionadas de imediato. Há uma representação da marinha por meio de atores. Os tais indícios? Aparentemente, o sistema sonar usado pela marinha encalha algumas baleias e nesta travessia de descobertas, um som gravado em meio ao oceano pacífico pode não ser de origem animal, mas oriundo de… sereias?
Logo depois, há uma montagem com matéria sobre os restos mortais encontrados num tubarão capturado na África do Sul. Aparentemente humanos, o conjunto indica que pode ser uma sereia, pois a outra metade é peixe. Assim, a figura mitológica descrita por gregos, vikings, chineses e outros povos ao longo de suas expansões marítimas, ganham status de realidade neste documentário curioso, por vezes monótono, instigante, mas pueril para quem conhece os mecanismos que engendram o falso-documentário. As atuações, por exemplo, dão a entender o tom falsário da narrativa, mesmo que os discursos tentem o tempo inteiro nos ludibriar de que aquilo é verdadeiro. E neste processo, lembramos de Mera Coincidência e sua guerra fabricada, possibilidade do jornalismo hegemônico, principalmente agora, na era das mídias digitais em ritmo vertiginoso. A tônica é clara e objetiva: os fatos podem ser criados e narrados da maneira que o interlocutor quer, sem preocupação com a firmeza na coesão e coerência dos detalhes. Em suma, o estabelecimento de uma crise no campo da comunicação.
No documentário, os esforços investigativos de uma equipe científica buscam descobrir a fonte por detrás de alguns mistérios acerca das gravações subaquáticas e de um corpo marinho que não foi devidamente identificado. Supostamente, estamos diante do “cadáver de uma sereia”. É quando adentramos na burlesca Teoria do Macaco Aquático. De acordo com essa linha, o trajeto da evolução do macaco para os humanos se deu também numa via em direção ao mar. Quem explica isso de cara limpa e cheio de pompa é um dos atores que se passa por um especialista do mundo acadêmico, guiado por um roteiro arregimentado para fazer a teoria se passar por algo sério, não ridículo como de fato parece ser (e é). O conceito em As Sereias – O Corpo Encontrado é o seguinte: as tais criaturas da mitologia na verdade são reais e a Administração Nacional Oceanográfica e Atmosférica aparentemente anda ocultando essas informações do mundo. Se o setor está nos enganado com isso, também pode estar por detrás de dados irreais sobre as mudanças climáticas e afins, afirma um dos depoentes, para a ira dos puristas que abominam o discurso dos documentários deste estilo, parcela do público que considera a produção um manancial de desinformação atroz e perigoso para a nossa cultura já ameaçada por tantas informações falsas.
Neste processo, os cientistas que encenam este estudo se dizem ameaçados pelo governo e num clima de sensacionalismo típico da imprensa marrom, As Sereias – O Corpo Encontrado constrói o seu discurso, tendo como apoio, a direção de fotografia de Tom Pridham, a condução musical de Richard Blair Oliphant e os efeitos visuais de Steven Gomez, todos medianos. É a linha A Bruxa de Blair, numa cultura afoita por figuras misteriosas, tais como Pé Grande e os Extraterrestres. Engraçado observar que desde as bases do documentário, a ideia de representação sempre esteve presente, como em Nanook, por exemplo, diferente do que certa época, aprendemos na escola sobre este tipo de narrativa, isto é, filmes que trabalham com determinado tema e servem como explicação teórica para aquilo, como uma espécie de manual de ensino. Aqui, a produção capitaliza na controvérsia, fabricada em meio ao discurso polêmico e altamente dosado por absurdos. A confiança que depositamos no estilo passa por um processo de corrosão e ao seguir uma linha de encontro ao discurso científico, o documentário turva o relacionamento dos espectadores com a perspectiva supostamente realista da linguagem em questão, causando o tal desconforto.
Sereias existem? Sim, como personagens da abundante mitologia.
O documentário pode ser considerado bom? Não, é monótono e exagerado em algumas partes, um espetáculo do ridículo mesclado com alguns trechos que nos enche de curiosidade, mesmo com a sensação de repelência ao depositarmos as nossas atenções ao seu conteúdo. Ao pegar a reputação do canal sobre vida selvagem e trazer um documentário no formato falso, os realizadores de As Sereias – O Corpo Encontrado se mostraram subversivos, mas causaram indignação para um série de espectadores que de tanto reclamarem, tiveram como retorno do canal a confirmação sobre o cancelamento de qualquer produção voltada ao estilo. Mas por qual motivo, tivemos a produção de Sereias – Novos Indícios, dentro do mesmo estilo falso-documentário, alguns anos depois? Isso é tema para o texto especifico sobre a narrativa, vai lá conferir.
Sereias: O Corpo Encontrado (Mermaids: The Body Found) — EUA, 2011
Direção: Sid Bennett
Roteiro: Charlie Foley, Sid Bennett, Vaibhav Bhatt
Elenco: Sean Cameron Michael, Andre Weideman, Candice D’Arcy, David Soul, Jason Cope, Helen Johns
Duração: 82 min.