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Crítica | Uma Sereia em Paris

Uma leitura atualizada do canto da sereia.

por Leonardo Campos
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O canto das sereias é um dos principais elementos de sua mitologia. Basicamente, nas histórias que conhecemos graças ao processo de tradução intersemiótica vertiginoso da era da reprodutibilidade técnica, temos estas criaturas como obstáculos para navegantes que guiados pelo misterioso canto destes seres, são carregados pelo manto da morte para um desfecho nada belo, bem diferente da voz melodiosa que indica outra coisa, nada parecida como a realidade à espreita. Foi assim no retorno de Odisseu após a guerra de troia, narrado na Odisseia de Homero, bem como noutras histórias que povoam o nosso imaginário cultural. Mergulhado numa belíssima atmosfera musical e visual, Uma Sereia em Paris resgata diversos elementos que formaram a cristalização das sereias ao longo da história da humanidade, tendo o canto como um de seus principais pontos de articulação entre atualidade e mitologia. Lançado em 2020, o filme é uma narrativa com belíssimas imagens cuidadosamente edificadas para encantar e flertar com o mito dentro de uma perspectiva contemporânea, cheia de romantismo e com clima nostálgico.

Na trama, acompanhamos a saga de Gaspar (Nicolas Duvauchelle), um cantor com péssimas experiências amorosas, desencantado e que jura nunca mais se apaixonar novamente, mas que certo dia, conhece uma sereia misteriosa e começa a mudar de pensamento. Lulu (Marilyn Lima) habita o rio Sena e constantemente atrai os homens com o seu canto, embalado por uma bela e sedutora voz. Quando a ouvem, as suas vítimas se apaixonam e o coração delas explodem. Sim, explodem internamente, no sentido mais literal. Depois que a encontram machucada no cais, Gaspar tenta socorrê-la de todas as formas possíveis. Sem muito sucesso no hospital, leva a sereia Lulu para casa e a coloca dentro de sua banheira. Lá, ela tenta a sedução que é parte de sua estrutura enquanto criatura, mas não dá certo. O coração de Gaspar, alegoricamente, já explodiu anteriormente. Várias vezes. É quando uma relação apaixonada se estabelece entre ambos. Sem conseguir aplicar seu encanto, Lulu fica intrigada com Gaspar, músico que passa pelo mesmo processo, pois a sua vida acaba de adentrar por uma fase um tanto fantasiosa e inesperada.

Ao longo de seus 102 minutos, Uma Sereia em Paris é um filme encantador. Em alguns trechos, a história se arrasta um pouquinho, mas a condução estética permite que a narrativa funcione como um espetáculo visual e sonoro a ser contemplado em seus detalhes, sem muitas dispersões. Nos créditos de abertura e encerramento, a técnica do stop-motion e animação introduz e amarra, respectivamente, toda a história de amor construída com muito esmero pela equipe técnica. Sob a direção de Mathias Malzieu, autor não apenas do argumento, mas também do roteiro, ao lado de Stephane Landowski. Os diálogos são todos cuidadosos, os atos divididos adequadamente, os personagens construídos com necessidades dramáticas devidamente delineadas, juntamente com os seus perfis físicos, sociais e psicológicos. Gaspar é um homem apaixonante, com suas tatuagens que o definem como um adulto cheio de conexões com a ludicidade de seu passado. A sereia da história também cativa, sempre muito bela e até mesmo ingênua, característica que destoa da estrutura básica deste ser mitológico no bojo da cultura ocidental.

Para nos apresentar Uma Sereia em Paris, os realizadores contam com o design de produção deslumbrante de André Fonsny, setor de maior destaque na história, com cenários caprichados e direção de arte peculiar, cheia de motivos marinhos e traços coloridos que forma paletas incríveis, valorizadas pela direção de fotografia de Virginie Saint-Martin, caprichosa na iluminação e na contemplação das imagens em quadros calculados com precisão e movimentos sempre conectados com o deslanchar da história. Tudo fica ainda melhor com a inserção dos efeitos visuais, supervisionados pela equipe de Ronald Grauer, acompanhados pela atmosférica trilha sonora de Dionysios e Olivier Daviaud, dupla que entrega um dos mais importantes segmentos na construção do filme, haja vista a importância da música característica da sereia dentro do cenário contemporâneo proposto pelo enredo. Focado na redenção de seus personagens, o drama romântico francês versa sobre amor, companheirismo, luto, amizade, dentre outras reflexões sobre relacionamentos humanos. É um enredo dócil, meigo e com figuras bastante carismáticas.

Além do conflito básico que gravita em torno do contato e das descobertas entre Gaspar e Lulu, temos como ponto nevrálgico que se torna obstáculo do amor que se aflora, Milena (Romane Bohringer), uma mulher obstinada a se vingar de Lulu depois que o seu marido morre sob o encanto da sereia. Ela é quem vai criar os percursos cheios de desafios para o amor entre a dupla principal se efetivar. Gaspar precisa manter a sua sereia em segurança e para isso vai se mover pela capital francesa e seus pontos turísticos mais românticos, já cristalizados em outros filmes e obras literárias. Uma Sereia em Paris ainda conta com Rossy (Rossy DePalma), personagem adjuvante que entra para ajudar o protagonista a encontrar o amor. Ainda na seara dos conflitos, temos o cabaré da família de Gaspar, herança que ele tem muito apreço e deseja manter, mas que o fantasma da falência insiste em assustar. É lá que o canto, a música e o entretenimento se unificam para alegrar a noite dos visitantes e de nós, espectadores que acompanham a trajetória de amor e busca pela felicidade destes personagens cativantes e construídos com muita sinceridade. O final, apesar de próximo da tradição, envereda-se por obstáculos maiores que o esperado e tornam a narrativa uma história menos comum do que poderia ser. Em suma, encantador.

Uma Sereia em Paris (Une Sirène à Paris) — França, 2020
Direção: Mathias Malzieu
Roteiro: Stéphane Landowski, Mathias Malzieu
Elenco: Tchéky Karyo, Rossy de Palma, Romane Bohringer, Marilyn Lima, Nicolas Duvauchelle, Alexis Michalik, Lou Gala, Nicolas Ullman
Duração: 102 min.

 

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