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Crítica | A Mesma Parte de um Homem

Quebrando expectativas e ansiedades.

por Michel Gutwilen
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A Mesma Parte de um Homem se apresenta, primeiramente, como a apresentação de uma relação hierárquica de gêneros dentro do ambiente familiar. Naquela casa, entre marido (Otávio Linhares) e mulher (Clarissa Kiste), pai e filha (Laís Cristina), há uma clara relação patriarcal de dominação e funções pré-estabelecidas. Estamos diante de uma família do interior, cujo sustento primário ainda consiste ainda na caça e na colheita para se alimentar. Temos a figura do pai “brutamonte”, “troglodita” que leva sua filha (Laís Cristina) para caçar, em uma espécie de ensinamento deste meio predatório e baseado na violência.  Neste primeiro momento, não há tantas sutilezas a nível de direção ou de roteiro. Os três personagens (pai, mulher, filha) estão sentados para jantar, mas o desconforto se faz palpável no ar. A fotografia é escura; a câmera faz um close no pai como um típico vilão; ele pede para a mulher cozinhar um ovinho para ele, ele fala sobre um assassinato normalmente enquanto come. Depois, há o sexo: a jovem é obrigada a escutar no quarto ao lado e a diretora Ana Johann faz questão de evidenciar a prática sexual como reflexo deste jogo de dominação. O homem ereto, a mulher de quatro e sua cara mal aparece, está para baixo, só importando as sensações do dominante naquele momento. No dia seguinte, um simples gesto de afeto da filha com a mãe, entendendo sua situação. Eis o breve retrato de uma família.

Há então um momento de transição, que se dá entre o desaparecimento do pai e a chegada do estranho. Neste momento, o “mal” não está mais dentro de casa, deixando de ser uma figura personificada, mas lá fora, no mundo. A casa, então, que antes era o local de dominação, passa a ser o lugar de proteção para aquelas duas mulheres. É nesta fase da narrativa que o A Mesma Parte de um Homem mais se aproxima de um exercício de suspense, onde um clima de paranoia se instaura na figura da mãe. É no rosto de Clarissa Kiste, com suas expressões faciais exageradas, que reside o terror, e a câmera da diretora Ana Johann parece querer explorar ao máximo a expressividade de sua atriz, sempre sufocando sua protagonista. Os latidos do cachorro, o barulho de uma porta, os amigos do marido que aparecem, a noite escura, cria-se um clima de que há algo de errado… tudo se torna uma possível ameaça invisível. 

Com a chegada do estranho (Irandhir Santos), começa um jogo de contrastes e uma inversão de papéis no que tange a dicotomia dominado e dominador que fora previamente apresentada no 1º ato. Há também um flerte com uma certa evocação de uma sobrenaturalidade, cuja dica inicial fora dada a partir da revelação de que a filha pediu ao “espantalho” pela morte do pai. O sobrenatural vai se insinuando a partir de uma aproximação estética de um jeito de filmar frio exportado de um cinema de festivais art house europeu, mas também pelo fato de que o roteiro sempre deixa no ar a ambiguidade se estranho é uma reencarnação sobrenatural do pai ou se, realmente, é só alguém estranho. Penso, porém, que se aprofundar em tal questão seja um beco sem saída, que mais atrapalha do que beneficia o filme, então é mais interessante voltar ao já citado jogo de inversões de papéis.

Como símbolo dessa alteração nas relações sociais familiares, é curioso pensar no modo como Irandhir Santos é apresentado. Após ser levado para dentro da casa depois de seu desmaio, sua roupa é tirada e ele é deixado apenas de cueca. A decupagem daquele momento por Johann, ao mostrar seu corpo por completo, evidencia uma fragilidade, ao mesmo tempo que também evoca uma certa sexualidade pela exposição daquele corpo semi-nu, que é observado por aquelas duas mulheres. Portanto, ele evidentemente passou a ser a figura “dominada” — estou tentado a usar a dicotomia “presa” e “predador”, não sei se é exatamente essa a relação trabalhada aqui. Igualmente, se mostra um acerto a escolha de elenco das duas figuras masculinas, no sentido de que boa parte das relações do filme passam pelos evidentes contrastes da brutalidade de Otávio Linhares e de uma certa delicadeza/fragilidade de Irandhir. 

Logo, o que se segue é um jogo de quebra de expectativas e ansiedade, tanto por parte do espectador, quanto pela mãe e filha, que nunca sabem exatamente o que esperar do estranho. O simples chute dado na mesa durante a refeição gera uma apreensão, que se revela só como uma brincadeira. É aí que parece residir a sacada de A Mesma Parte de um Homem, em brincar com essa gradual inversão de papéis. O estranho fala sobre ter uma empregada, já a mulher que nunca teve; ele conta de seu intercâmbio na Alemanha; aponta que não nasceu para a enxada, enquanto a mulher tinha as mãos cheias de calo. Ver a filha matando uma galinha se torna uma tortura. Agora é o homem que é posicionado como a figura oprimida dentro daquele ecossistema “duro” e “frio”, como um menino de apartamento que têm a primeira experiência da vida na roça. O exemplo mais explícito disso tudo está quando se compara a já citada cena de sexo entre Otávio-Clarissa com a de Irandhir-Clarissa. Ela empurra sua cabeça para baixo forçando o oral; ela monta em cima dele; no banho ela bota ele de costas. Mais explícito do que isso é impossível. A dominada virou dominadora.

Contudo, o relaxamento — esse, que se dá até no tom da fotografia, há mais externas de dia, as refeições também são “ao claro” — e a inversão de papéis não é para sempre. Nas sutilezas que a grande atuação de Irandhir Santos consegue criar, seu personagem vai criando uma presença um tanto quanto incômoda progressivamente. Ainda que nunca fique claro se ele é de fato uma nova ameaça ou não, se é apenas paranoia, mas devido a todo trauma anterior, isso é um gatilho suficiente para ligar o alerta de novo na protagonista. No fim, finalmente há a coragem de deixar para trás qualquer homem e seguir em frente, apenas as duas mulheres. Talvez seja essa a grande lição final que o filme queira: a opressão pode se dar de diferentes formas, podendo vir de qualquer tipo de homem, não só daqueles que são figuras típicas estereotipadas dos “machões”, mas também daqueles que se vendem como “frágeis”. A solução não é fazer do homem o dominado e a mulher dominadora, pois talvez ela de fato nunca se sinta plenamente segura de sua posição. Para a almejada paz, é preciso um completo rompimento.  

A Mesma Parte de um Homem — Brasil, 2021
Direção: Ana Johann
Roteiro: Ana Johann, Alana Rodrigues
Elenco: Clarissa Kiste, Laís Cristina, Irandhir Santos, Otavio Linhares, Zeca Cenovicz
Duração: 99 mins.

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