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Crítica | O Ventre do Atlântico, de Fatou Diome

por Kevin Rick
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Esportes são formidáveis. O senso comunitário, o sentimento de união, a torcida conjunta, a alegria e tristeza compartilhada, são alguns dos exemplos do que o esporte promove. Obviamente que existem os imbecis que levam tudo ao pé-da-letra, mas a essência do esporte é incorruptível – ou pelo menos deveria ser. Em especial o futebol em seu alcance globalizado, na forma de entretenimento vasto, não fazendo distinção de classe, credo ou cor – uma piada. Ora, futebol não apenas entretém ou é recreativo. O futebol é uma forma de fuga, a salvação para os desafortunados, em sua maioria do terceiro mundo. Ele simboliza o caminho da pobreza à glória – será mesmo? O Ventre do Atlântico

O Ventre do Atlântico joga, rebate, desmoraliza bem na sua cara a superficialidade perfeita de propaganda enganosa da perspectiva privilegiada a respeito do preconceituoso sistema construído por colonialistas, hoje chamados de países desenvolvidos, sobre o futebol… e muito mais. Fatou Diome não quer abrir um debate sobre a existência do racismo, xenofobia ou fanatismo religioso na conexão Senegal-França. Ela quer expor a verdade nua e crua através de um diário semi autobiográfico do pertencimento humano sublinhado pelo subdesenvolvimento ancestral enraizado na cultura senegalesa.

A narrativa acompanha Salie, uma escritora senegalesa vivendo na França, usando-a como linha discricional para exposição da experiência de imigrantes africanos para a Europa, seja através de sua própria vivência e relacionamentos familiares, seja por histórias paralelas de senegaleses que navegaram nos problemas que assolam o povo africano. Logo de cara Fatou Diome estabelece o futebol como elemento intrínseco da cultura senegalesa, servindo como uma espécie de religião aos jovens, um acesso à fuga da miséria local para a riqueza francesa. É a partir daqui que inicia-se a exibição da glorificação da França feita pelo povo senegalês, em um complexo estudo da escravidão mental africana imposta pelo europeu, e perpetuada não intencionalmente pela falta de educação e perspectiva senegalesa.

Afinal, qual nativo do terceiro mundo não quer aventurar-se nas aclamadas metrópoles mundiais em busca de uma vida melhor? Ora, todos os que vieram da França constituíram riqueza para os padrões locais, os jogadores senegaleses jogam nos clubes franceses, as televisões vieram da França e os comerciais exibem a belíssima vida dos brancos. A realidade é bem diferente. Ao chegarem na França os senegaleses são, antes de qualquer coisa, negros, depois proletariados de segunda classe e, por último, imigrantes. A política estatal não apenas dificulta sua entrada, como torna a estadia excruciante. Se o visto é uma espécie de documento divino, a polícia é satã, podendo jogá-los novamente no inferno da miséria.

Este paralelo do engrandecer ilusório com a verdadeira realidade para imigrantes africanos é brilhantemente contraposta entre Salie, que sofre na pele o preconceito europeu, e seu irmão, Madické, que idealiza ir à França para, ironicamente, conhecer a seleção italiana. É palatável a frustração de ambos na obra. Em seu conhecimento, Salie não consegue mudar o retrógado pensamento do irmão, que em sua ignorância social é preenchido por raiva da irmã mais velha e pelo temor de morrer em meio à pobreza. A relação fraternal é utilizada por Diome para demonstrar como as correntes da escravidão nunca foram abolidas do ponto de vista sócio-político. Ir para a França e ter uma vida humilhante e escassa em troca de uns trocados ou continuar na terra natal sem perspectiva? É nesta prisão tão remanescente do colonialismo que se encontra a escolha da classe baixa senegalesa.

A única verdadeira saída é a educação. Esta é uma solução constantemente martelada pela autora. O conhecimento liberta as garras da escravidão mental, abrindo portas para a verdadeira mudança social em Senegal. No entanto, é dentro deste contexto da comunidade dos irmãos que a narrativa expõe as verdadeiras consequências deixadas pelos países do outro lado do Atlântico. Ora, o preconceito sempre existiu, mas uma das cruéis sequelas sentidas em Senegal é a arcaica moral provida da falta de educação. É exatamente por esse motivo que Salie escolheu a obscura vida na França, pois apenas lá ela teria a liberdade para ser ela mesma, ainda que marginalizada socialmente e perpetuamente uma cidadã acidental, uma estrangeira permanente.

A contextualização da obsoleta realidade social senegalesa é principalmente exposta por contos terríveis que nunca adentram na sensibilidade barata, mas emocionam o leitor violentamente, como um golpe auto reflexivo das intricadas relações humanas. Poligamia, fanatismo religioso, machismo, exílio, são alguns dos pontos que poluem essa cultura. Diome pula entre estas viscerais fábulas realísticas e a narrativa principal dos irmãos de forma sublime, sempre conectando algum pensamento ou ação da dupla com a paralela história em ação.

O Ventre do Atlântico é uma multifacetada, reflexiva e, honestamente, surra emocional do drama deste povo ainda acorrentado mentalmente pelo preconceito, seja ele advindo de fora ou de dentro. Minha única ressalva ao livro é a falta de fluidez na escrita de Diome que dificulta um pouco a leitura, em muitos momentos se tornando didática além da conta, mas nada que danifique o estudo de pertencimento cultural senegalês. Um livro praticamente obrigatório para o entendimento intrínseco do que a escravidão fez e ainda faz, e como a Europa, mais especificamente a França, mantém a mesma divisão racial, ainda que digam ser desenvolvidos. A distância marítima parece pequena ao olharmos o afastamento humano.  

O Ventre do Atlântico (Le Ventre de l’Atlantique) – Senegal, França, 2003
Autora: Fatou Diome
Publicação original: Editions Anne Carrière
No Brasil: Editora Malê (2019)
Tradução: Regina Célia Domingues da Silva
208 páginas

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