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Crítica | A Mulher Que Fugiu

por Michel Gutwilen
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Cinco anos foi o tempo que Gam-hee (a espetacular Kim Min-hee, fiel colaboradora de Hong Sang-soo) passou com seu marido, sem se desvencilhar dele por um único dia. Porém, com seu cônjuge precisando viajar a trabalho, a protagonista decide visitar três amigas nos arredores de Seul. Portanto, três blocos marcam A Mulher Que Fugiu, um para cada encontro, sendo todos marcados por traços típicos sang-soonianos: conversas cotidianas sobre uma mesa de refeição; uma decupagem rígida de poucos planos que vai se remoldurando a partir de zooms-in/out e panorâmicas; e, claro, homens chorões. Dito isso, resta explorar na crítica de que modo sua marca já conhecida dialoga com sua nova história de modo que ela não seja apenas uma “fórmula”, mas sim, como seus movimentos de câmera, reposicionamentos que permitem diferentes óticas.

Apesar de seu título ser sugestivo, não é de imediato que se entende quem, de fato, está fugindo ou de quem se foge. Afinal, Gam-hee não parece infeliz com o seu casamento quando parte em viagem, mas isso é o que ela vai descobrindo conforme encontra suas amigas. De certa forma, todas aquelas mulheres estão presas a seus modestos apartamentos e vidas. É neste ponto que entra a decupagem de Sang-soo, que por diversas vezes ensaia um diálogo entre mundo exterior e interior por meio dos movimentos de câmera. Tanto na primeira visita feita a amiga quanto na segunda, a câmera começa de fora para dentro, com o plano começando no mundo lá fora, de céus e montanhas, que ocupa todo o quadro. Posteriormente, um zoom out se afasta daquela natureza e revela que aquilo é parte da vista que se têm da moldura de uma janela.

De maneira similar, antes da terceira amiga ser apresentada, Sang-soo começa com um plano de uma montanha e depois alterna para um outro plano da mesma paisagem, só que com uma grade de parapeito na frente, no qual um zoom out revela a mulher olhando para este horizonte. Claramente, há uma longa distância entre aquelas mulheres e a liberdade. Ou seja, é quase como esses movimentos de câmera representassem o fluxo de pensamento daquelas próprias. Elas estão com a cabeça na liberdade do mundo lá fora, mas aquilo não passa de uma mera ilusão. A câmera sabe que aquilo é uma impossibilidade e por isso sai deste devaneio, voltando para dentro dos apartamentos e lembrando que é lá que a vida está acontecendo. 

Em paralelo com essa ideia também são os dois momentos em que Gam-hee vai ao cinema, no terceiro ato. Na tela é projetado um mar, com as ondas indo e voltando, em uma espécie de símbolo máximo de um espírito fugaz. Só que há uma enorme diferença nas duas situações: na primeira, a panorâmica gira da tela (ou seja, do oceano fictício) para a protagonista, no mundo real; já na segunda, o movimento oposto é feito, com A Mulher Que Fugiu se encerrando dentro da imagem do metafilme. Ora, na primeira oportunidade, o significado é o mesmo das panorâmicas anteriores: uma lembrança de que a liberdade é um objeto distante e irreal dentro de uma moldura, devendo o mundo real há de prevalecer. No entanto, emblemático que Hong depois faça o caminho inverso, tratando-se de um final agridoce para sua obra.

Depois de toda a jornada de Gam-hee, ela finalmente percebeu que o que havia feito até então era uma tentativa de fuga inconsciente. Então, quando a câmera vai em direção ao mar cinematográfico, é finalmente uma autonomia da protagonista, que agora deliberadamente sabe que deseja aquela fuga. Porém, há também a consciência de que a fuga física nunca se concretizará, sabendo ela que deverá voltar ao marido em breve, restando apenas o Cinema como meio autoconsciente de alcançar, ainda que por um tempo delimitado, aquilo que não é possível no mundo real: a liberdade.

Um outro ponto interessante e complementar reside na presença dos homens neste filme tão feminino e como Sang-soo organiza tais aparições em sua mise-en-scène. Na maior parte do tempo, a predominância cênica é das mulheres, que estão sentadas de frente umas para a outras e de perfil para a câmera. O que importa não é como o espectador está enxergando esse diálogo, mas como elas se vêem. São momentos de sororidade, de conversas banais aparentemente sobre o cotidiano, mas que camuflam em seus subtextos a grande questão de liberdade que é o mote narrativo. Por exemplo, uma delas quer ser vegana (livre), mas diz não conseguir e fala isso enquanto come carne. 

De modo oposto às mise-en-scènes dos encontros femininos, que se passam em locações interiores, Song retrata os três homens que aparecem em cena em ambientes exteriores. Eles estão sempre organizados da mesma forma: de costas para a câmera, enquanto a mulher está de frente para ele (e a câmera). Da horizontalidade do diálogo feminino para a verticalidade do confronto. Os homens surgem não como pessoas individualizadas (pouco vemos de seus rostos), mas um mal sem face que atormenta a vida daquelas mulheres e que precisam ser encarados frontalmente por elas. Eles são insistentes diante da negativa e as mulheres perseveram em suas afirmações. Agora, importa que o espectador as veja justamente porque é o momento de afirmação delas. Elas estão expulsando os problemas de suas vidas e, ainda que não possam fugir, podem ter pequenas vitórias nas batalhas cotidianas.

A Mulher Que Fugiu (The Woman Who Ran ou Domangchin yeoja) — Coréia do Sul, 2020
Direção: Hong Sang-soo
Roteiro: Hong Sang-soo
Elenco: Kim Min-hee, Seo Young-hwa, Song Seon-m,i Kim Sae-byuk, Kwon Hae-hyo, Lee Eun-mi, Kang Yi-seo, Shin Seok-ho
Duração: 77 mins.

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