Quem Quer Ser um Milionário? foi o grande sucesso cinematográfico não mainstream de 2008 e um verdadeiro ímã de premiações, levando os quatro Globos de Ouro a que concorreu, inclusive o de Melhor Filme Dramático e oito dos 10 Oscars a que foi indicado, de Melhor Filme a Melhor Mixagem de Som, passando por Melhor Direção, Fotografia e Roteiro Adaptado. Muitos podem argumentar que o longa é a versão “higienizada”, ocidentalizada da Índia e de suas agruras, algo com que não concordo pelas razões que colocarei abaixo, mas, independente disso, creio ser impossível não ser tragado para a empolgação e tensão que o longa gera basicamente a cada fotograma, mesmo quando o pior do país é visto em detalhes, seja verdadeiro ou não.
Para começo de conversa, o longa dirigido pelo britânico Danny Boyle e pela indiana Lovellen Tandan a partir de roteiro que Simon Beaufoy adaptou do romance de Vikas Swarup, é, estruturalmente, um conto de fadas. Um conto de fadas com horrores e violência contra crianças, corrupção e miséria extrema, mas, mesmo assim, um conto de fadas, algo evidenciado exatamente pelo jogo televisivo que o jovem Jamal (Dev Patel em seu longa de estreia) participa na esperança vã e impossível – no mundo real – de efetivamente tornar-se milionário para mudar sua vida completamente e finalmente conseguir ficar junto de Latika (Freida Pinto também em seu primeiro longa vivendo a versão mais velha da personagem, com Tanvi Ganesh Lonkar na versão adolescente e Rubina Ali como criança), o amor de sua vida. Em nenhum momento a obra esconde isso, até porque é importante que o espectador tenha essa visão desde o começo, de forma que seja possível compreender e aceitar todas as conveniências narrativas que permitem que o competidor responda às perguntas que lhe são feitas. Se o filme fosse supostamente realista, como muita gente diz que ele não consegue ser (porque ele nunca tentou ser, ora bolas!), a carga de suspensão da descrença seria enorme e insustentável. Como conto de fadas, esse ônus fica leve e fácil de ser carregado, ainda que Boyle e Tandam talvez tenham esticado a história mais do que deveriam, formando uma pequena barriga narrativa lá pela metade de sua duração que, porém, começa a desaparecer na medida em que a obra caminha para seu clímax que, mesmo também sendo alongado, consegue manter um bom grau de suspense.
E é por isso que mesmo a desgraceira horrorosa que Jamal e aqueles ao seu redor vivenciam é enfocada com um fotografia vibrante e coloridíssima de Anthony Dod Mantle (O Último Rei da Escócia, Anticristo, 127 Horas), algo que, obviamente, também funciona para emular a pegada semelhante que perpassa os filmes de Bollywood, normalmente também longe do realismo, mas que são claramente objetos dessa homenagem semi-ocidental (pois é uma co-produção indiana, com co-direção indiana, baseada em um romance indiano). A música, as cores e a transformação de horrores em fiapos de esperança conduzem o espectador em uma montanha-russa de sentimentos que vão desde aversão total até a alegria efusiva que, porém, só tem o condão de diminuir a jornada de Jamal desde bem pequeno vivido primeiro por Ayush Mahesh Khedekar (a encarnação da felicidade de ser criança, diria) e, depois, por Tanay Chheda antes de chegar a Patel, se o espectador não encarar a fita como uma versão positiva (sim, positiva) da muito mais dura e muito mais terrível realidade. É escapista? Com certeza é, como uma gigantesca parte do “cinemão” é, mas é um escapismo elegante, muito bem dirigido que subverte expectativas sem deixar de abrir espaço para que um pouco dos profundos problemas socioeconômicos do país que retrata sejam semeados na mente do espectador.
Outro elemento importante que não se pode deixar de lado é o elenco. As trincas de atores então amadores que vivem Jamal, Latika e Salim, este último o irmão mais velho de Jamal que, porém, se torna seu inimigo e que é vivido primeiro por Azharuddin Mohammed Ismail, depois Ashutosh Lobo Gajiwala e, finalmente, Madhur Mittal, foram muito bem escolhidas, com os diretores extraindo o melhor que cada um dos nove atores tem a oferecer, com o pequeno Ayush Mahesh Khedekar, o Jamal mais novinho, sendo um impressionante destaque que só ganharia concorrência anos mais parte com Sunny Pawar como Saroo (que, mais velho, é vivido pelo mesmo Patel em Lion – Uma Jornada para Casa). Mas o elenco adulto e experiente não deixa nada a desejar às estrelas jovens, com Anil Kapoor como Prem Kumar, o traiçoeiro anfitrião do jogo e especialmente o saudoso Irrfan Khan como o Inspetor de Polícia sem nome, mas muita personalidade servindo quase como guias para a linha narrativa principal que vai do presente ao passado com muita fluidez e cuidado graças à montagem de Chris Dickens (Chumbo Grosso, Os Miseráveis, Rocketman).
Quem Quer Ser um Milionário? é um jogo muito bem jogado por seus diretores, roteirista e elenco, além de toda a equipe técnica, resultando em um longa que descaradamente passa um belo e brilhante verniz nos problemas reais que aborda, mas sem que o espectador seja completamente poupado deles. É, para todos os efeitos, uma fábula que, como as melhores por aí, exige que tenha sua moral extraída com um nível de observação maior do que a mera contemplação de sua superfície.
Quem Quer Ser um Milionário? (Slumdog Millionaire – EUA/Reino Unido/Índia, 2008)
Direção: Danny Boyle, Loveleen Tandan
Roteiro: Simon Beaufoy (baseado em romance de Vikas Swarup)
Elenco: Dev Patel, Ayush Mahesh Khedekar, Tanay Chheda, Freida Pinto, Rubina Ali, Tanvi Ganesh Lonkar, Madhur Mittal, Azharuddin Mohammed Ismail, Ashutosh Lobo Gajiwala, Anil Kapoor, Irrfan Khan, Saurabh Shukla, Mahesh Manjrekar, Ankur Vikal, Rajendranath Zutshi, Sanchita Choudhary, Mia Drake Inderbitzin, Siddhesh Patil, Shruti Seth, Arfi Lamba
Duração: 120 min.