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Crítica | Lua Negra

por Leonardo Campos
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Há filmes que nos acompanham com histórias que não estão exatamente vinculadas ao seu conteúdo, mas ao momento de contemplação. Lua Negra é um destes casos. Como pessoa desde sempre aguçado no que diz respeito ao faro para a pesquisa e memória, lembro exatamente, como se fosse hoje, de um debate entre duas pessoas que dividiam comigo o interesse, durante um final de semana, na locação de filmes para as atividades diletantes da família, ainda na era VHS. A produção lançada por aqui em 1996, direto em vídeo, foi um relativo sucesso nos tempos áureos das videolocadoras, quando fazíamos fila para conseguir os últimos lançamentos nos badalados finais de semana. Com o estojo em mãos e rumo ao caixa, as duas pessoas que testemunhei discutiam o tema da minha locação, os lobisomens, tendo como catalisador do papo o cartaz que estava entre os destaques do estabelecimento. Evangélica, uma das pessoas dizia a sua opinião sobre a não existência de lobisomens, algo definido como uma lenda, sem menção bíblica que pudesse explicar tais criaturas. Segundo a interlocutora, fenômenos naturais ou distúrbios psiquiátricos conseguem dar conta de refletir o mito, mas nada além disso.

Será? Quem dialogava trazia elementos folclóricos na fala e batia o pé com firmeza na exposição sobre o seu ponto de vista em relação aos misto de homem e lobo que há eras domina a cultura popular, criatura que ao longo do dia apresenta-se em sua forma tradicional, mas nas noites de lua cheia, transforma-se num terrível e sanguinário monstro irracional, caso do personagem de Lua Negra, produção dirigida por Eric Red, um pequeno clássico do horror que merecia ser mais conhecido pelo público amante dos filmes do segmento. Também responsável pelo texto, o cineasta teve como base a novela de Wayne Smith, narrativa sobre um homem amaldiçoado depois de ser atacado por um lobisomem, algo relativamente parecido com o papo do debate da videolocadora mencionado na abertura do texto. Antes de adentrar mais firmemente no filme, peço licença para amarrar o resgate memorialístico. Pelo que ainda resta da conversa, lembro que a única menção das sagradas escrituras para o monstro estava no livro de Daniel, em especial, na história de Nabucodonosor, figura que ao perder o juízo e ser castigado por Deus, tornou-se um monstro nas mesmas proporções, com unhas e pelos a crescer, algo modificado apenas depois de seu processo de arrependimento. Infelizmente, o lobisomem do filme não teve a mesma sorte.

Com explicações sempre voltadas aos demônios, o discurso dessa pessoa que ainda habita tão forte a minha memoria cinéfila foi acompanhado com certa apreensão, haja vista ser um relato da adolescência, período em que geralmente acreditamos em muita coisa. Fiquei bastante impressionado com os comentários adicionais da conversa que não cabem aqui e levei isso para o filme. Sempre que o rememoro, a situação se aproxima. É como lembro da narrativa que começa no Nepal, com o fotógrafo e jornalista Ted (Michael Paré) e sua namorada Marjorie (Johanna Marlowe). Ele está no local para a cobertura de um trabalho quando no momento de descanso e intimidades, são atacados por uma criatura monstruosa que ceifa a vida da moça, deixando Ted marcado por diversas feridas e uma futura maldição: a transformação nas noites de lua cheia, período de transição humana para o formato do lobisomem, criatura sem racionalidade que ataca e mata as suas vítimas com muita violência. Criada pela equipe de efeitos visuais de Max Irvins e pela maquiagem de Christopher Allen Nelson, a mitológica figura do lobisomem aqui é trabalhada de maneira convincente, num design bem aterrorizante e eficiente.

Esse formato para o lobisomem da abertura é trabalhado posteriormente, depois que algum tempo se passa e Ted vai residir num trailer, numa região próxima ao lar de sua irmã Janet (Mariel Hemingway), mãe de Brett (Mason Camble), jovem que por sua vez, é dono de Thor, o amado cão da família. Ciente do estado deprimido de seu irmão, Janet insiste em seu deslocamento para a sua casa, tendo em vista passar algum tempo. Ele reluta inicialmente, mas aceita. Logo, a sua chegada é marcada pela coincidência mortal, isto é, uma série de ataques atribuídos a um animal que a polícia ainda não conseguiu identificar a autoria. Sabe-se que a criatura responsável pelos incidentes é de grande porte, mas ninguém além de Thor, o astuto cachorro, desconfia de Ted, o responsável pelas situações sangrentas na região, cada vez mais constantes, a ponto de sua irmã e sobrinho começarem a desconfiar das atitudes suspeitas que envolvem corridas noturnas estranhas, além de algema que designa algo de incomum a acontecer na vida do fotógrafo por aqueles dias. Depois que os seus diários são lidos, Ted fica mais exposto, até que situação alcança um ponto insuportável que descamba para a catarse, sem o final bíblico de Nabucodonosor. Aqui, a redenção pode até acontecer se Thor for eliminado por Ted, mas a família parece não interessada em se desfazer do amado cão. Ao ampliar as suas dimensões de monstro, Ted acredita que o amor e a família podem ajuda-lo, mas será que a irmã e o sobrinho querem correr esse risco?

É o que acompanhamos ao longo dos 80 minutos da produção. Em seu esquema narrativo, Lua Negra conta com a direção de fotografia de Jan Kiesser, interessantíssimo no desenvolvimento do ponto de vista do cachorro, um dos protagonistas da história que toma menos elementos do livro, mas ainda assim preserva Thor com algum destaque. O design de produção de Linda Del Rosario e Richard Paris funciona bem, principalmente nas cenas que ocorrem na casa, arquitetura que nos passa uma sensação vaga de perigo constante, com sua estrutura envidraçada e aparente exposição aos perigos que estão constantemente dentro e fora do lar. Para acompanhar o clima de horror proposto com as transformações e o aumento da sanha assassina do lobisomem, os realizadores investem na adequada trilha sonora de Daniel Licht, partitura que entrega exatamente o que Lua Negra precisa: ferrões musicais para alguns sustos, clima ominoso e manutenção da atmosfera de pavor. Em suma, um filme que funciona nem dentro de suas possibilidades, produção com status de pequeno clássico que como já mencionado, merecia ser mais conhecida. Aos interessados em curiosidades, a cena que o pequeno Brett assiste na televisão é um trecho do filme O Lobisomem de Londres, de 1935, ironizado rapidamente, numa breve menção metalinguística da narrativa, numa demonstração da longevidade desses monstros no cinema.

Lua Negra (Bad Moon/Estados Unidos/Canadá, 1996)
Direção: Eric Red
Roteiro: Eric Red (baseado no livro Thor de Wayne Smith)
Elenco: Mariel Hemingway, Michael Paré, Mason Gamble, Ken Pogue, Hrothgar Mathews, Johanna Marlowe, Gavin Buhr, Julia Montgomery Brown, Primo
Duração: 80 min

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