- Há SPOILERS. Leiam aqui as críticas de World Beyond e, aqui, as de todo o universo The Walking Dead.
O piloto de World Beyond não foi bom, mas também não deu mau sinal, apesar da proposta por si só ser controversa. O grande problema daquele primeiro episódio estava em termos de organização dramática dos arcos, nenhum personagem se mostrava interessante e toda série boa que se preze precisa demonstrar bons personagens desde o piloto, além do mais, o tom parecia leve em demasia para algo relacionado ao universo The Walking Dead, mesmo para a proposta jovem. Felizmente, esses problemas foram ajustados em The Blaze of Gory, que deu um salto de amadurecimento considerável, principalmente em segurança do que quer contar como narrativa. Até suspeitei disso quando escrevi sobre o primeiro episódio, e agora fica muito claro que sua grande dificuldade foi mesclar a apresentação de certas pendências introdutórias ao mesmo tempo em que apresentava os personagens de modo que suas motivações fossem convincentes.
Passado esse primeiro momento, este segundo capítulo tem muito mais espaço para desenvolver essas motivações fora de gatilhos genéricos e mostrar que o buraco é mais em baixo, sem necessariamente apostar em artimanhas expositivas de roteiro para demonstrar isso. Elas fluem naturalmente por meio de diálogos verdadeiros nas interações entre eles, que vão começando a se conhecer melhor através dos primeiros desafios que o mundo morto os oferece. Percebe-se uma gradação bem interessante na introdução desses desafios em conjunto ao descascamento dos personagens. Começa com aquele zumbi do último episódio, passa por aquele que leva spray de tinta na cara até chegar naquela primeira horda no cemitério de ônibus escolares. Para cada situação, há elipses de conversas bem proveitosas, onde o quarteto discute como lidou com a anterior e vai puxando outros assuntos que vão sutilmente desarmando as perspectivas dos jovens sobre esse apocalipse.
Todos os quatro evoluem bem nessas interações que ajustam a leveza do tom para algo não tão mais vinculado à ideia de adaptação de distopia adolescente que precisa “salvar o mundo”, sendo mais a cara da marca mesmo, sobrevivência sendo colocada em risco a cada esquina, e uma jornada de caráter mais pessoal direcionada a um dilema moral mais existencial do que físico, característico do adolescente, mas que não é tratado de maneira boboca e faz total sentido em ser abordado dentro da ideia da série. Expande o horizonte do hoje limitado, dilema da principal, que passeia constantemente entre a ascensão e a queda de uma idealizada nova sociedade ao invés de assumir logo esse lado novo e concentrar sua dramática. No fim, é isso que World Beyond parece buscar, a aposta nos jovens não é somente a busca de um frescor, ela agora parece uma ferramenta coerente para justificar o salto de etapas que ficaram atrasadas demais para ser contadas.
Refiro-me ao limbo do que deveria ter sido uma gradação consciente para a chegada desse novo mundo, ao invés de já ser jogado de cara nele pronto. É algo que a série principal não tem mais vigor de construir porque demorou demais em arcos anteriores, então, para pular logo essa etapa, surge World Beyond, vendido como promessa de continuidade ao gancho de Rick (Andrew Lincoln), com uma abordagem adolescente visando reviver um espírito cool da série, que na prática parece estar preocupado em organizar e refrescar os dilemas do seu universo em território novo, para quando tudo se cruzar em um possível final de ciclo (e início do próximo?), as amarras fiquem mais fáceis de juntar. Ainda que não dê para confiar plenamente no que The Walking Dead quer pregar, a condução desse episódio dá boas esperanças, especialmente quando busca se desvincular dos próprios rótulos, mesmo que não saiba fazer isso de forma inventiva ainda.
A jornada de Felix (Nico Tortorella) demonstra bem essa vontade de desprendimento à dependência de um apelo gráfico dos dramas, assim como reforça a ideia de que o foco estará em conflitos mais íntimos. Seu flashback é bem parecido ao de Hope (Alexa Mansour) no episódio anterior, buscando o trauma para além de imagens impactantes vindas do universo zumbi, procurando em algo antes disso tudo, com a não aceitação paterna de sua homossexualidade. No primeiro momento em que aparece, até soa forçado, mas ao longo do episódio ganha sentido, sem precisar de um espelhamento óbvio com algo do presente, apenas contextualiza a origem de determinada característica de sua personalidade implicitamente com a motivação. Isso é ótimo, embora ainda tenha um posicionamento bem mandraque na montagem, o que torna a condução ainda um tanto brega, sentimentalista, como as cenas que reforçam o trauma de Hope, ou as pequenas trocas para cenas de Felix ensinando como sobreviver no momento que precisam.
De qualquer forma, não é algo tão incômodo assim, sem contar que não anula o espaço para os desafios físicos também, afinal, o caminho não pode ser só drama existencial, o universo zumbi exige o elemento survival em alguma dose. Como essa não tem o mesmo impacto faz tempo, a dose vem certeira para ela ser relevante, e isso traz um alívio porque volta a desfrutar da redoma de personagens vulneráveis, mas que, condizentes com o momento, não são burros nem se deixam levar facilmente pelo emocional. É muito bom ver o quarteto ter que bolar estratégias para lidar até mesmo com apenas um zumbi, fora a inexperiência, vai aos poucos retomando aquela velha sensação de angústia que qualquer um pode sobrar a qualquer momento. Esse sentimento vem de passagem na sequência dos ônibus, muito bem conduzida e trabalhada na câmera circular, que nos transmite uma crescente sensação de cercamento aos personagens, por um breve momento, acreditei que algo realmente ruim poderia ter acontecido a um deles.
Claro que dentro dessa proposta de tentar desconstruir alguns rótulos, mortes impactantes não devem acontecer tão cedo, mas só de termos o sentimento de importância, já temos um salto, tanto em relação ao episódio anterior quanto à normalidade entregue pelas demais séries ultimamente. Por mais que o gancho de Hope, indo para o fogo depois da ideia de isca viva do plano de Elton (Nicolas Cantu), seja no mínimo duvidoso nesse sentido. Será que já no próximo episódio rola algum tipo de sacrifício? Espero que não, já que ela é a personagem com mais carisma até agora. Em The Walking Dead, a esperança geralmente é a última que morre, e não vou mentir que estou curioso para saber como os próximos desdobramentos serão conduzidos.
The Walking Dead: World Beyond – 1X02: The Blaze of Gory | EUA, 11 de Outubro de 2020
Criação: Scott M. Gimple, Matthew Negrete
Direção: Magnus Martens
Roteiro: Ben Sokolowski
Elenco: Aliyah Royale, Alexa Mansour, Hal Cumpston, Nicolas Cantu, Nico Tortorella, Annet Mahendru, Julia Ormond, Christina Marie Karis, Stirling Gardner, Samantha Lorraine, Dawson Shea
Duração: 48 minutos