Home FilmesCríticas Crítica | Botões Dourados

Crítica | Botões Dourados

por Michel Gutwilen
533 views

Certas palavras são muito comumentemente associadas ao militarismo: a disciplina e a hierarquização. Perde-se a individualidade em detrimento de um certo mecanicismo gerado pelo seguimento cego de ordens e a realização de movimentos coordenados e síncronos. Basicamente, como ser educado para servir a um bem maior e esquecer de si mesmo. O curta documental Botões Dourados investiga tais questões a partir de uma escola de cadetes, na Rússia, preparatória para a Guarda Nacional — esta criada por Vladimir Putin, em 2016. Teoricamente, ela deveria lutar contra o extremismo e o radicalismo, mas, na prática, o que se vê é o seu uso como exército pessoal do presidente para suprimir quem discorda do regime (segundo o letreiro exibido no início da obra).

O primeiro plano que se vê já possui todos os elementos citados acima. A câmera está posicionada no chão, então não vemos rostos, mas apenas botas de coturno realizando passos em sincronia, conforme o som de tambores e as ordens de um superior. Ou seja, a própria decupagem escolhida pelo diretor Alexey Evstigneev reforça esta perda do Eu ao mesmo tempo que torna perceptível uma opressão típica do militarismo, principalmente através do áudio, pela força com que os pés batem no chão e o tambor se faz presente. 

Em seguida, o que se sucederá na primeira metade de Botões Dourados serão os rostos dos cadetes, em primeiríssimo plano, olhando diretamente para a câmera, concomitantemente escutamos as vozes de seus instrutores e, ao fundo, desfocado, estão acontecendo atividades dentro daquela escola. E o que está evidente no plano são justamente essas faces tão jovens, a inocência e a imaturidade que se veem através do olhar. Enquanto isso, escutamos seus professores doutrinando questões sobre diversos assuntos como a Religião, já moldando o pensamento daquelas crianças desde pequenos. 

Curiosamente, ao mesmo tempo que Evstigneev, através de seu filme, tem a oportunidade de individualizar aquelas pessoas em contraste ao próprio processo de mecanização que elas sofrem na realidade, o próprio ritmo da montagem, junto com a composição dos planos, brinca com esta mesma perda de autonomia. Aproveitando que se trata de um filme russo, usarei os conceitos teóricos de Eisenstein: há tanto o uso de uma montagem rítmica (todos os meninos estão na mesma posição, imóveis no plano) quanto métrica (há uma sincronia nos próprios cortes). Assim, Botões Dourados, através de sua forma fílmica, ironiza a disciplina do ambiente militar, ao passo que é este formato de documentário mais formal que permitiu uma infiltração no sistema e a própria existência do curta.

Na segunda metade dos vinte minutos de duração, o diretor também nos compartilhará outros planos. Uma sequência muito marcante é aquela no qual vemos todos aqueles pequenos em seu celulares, muito provavelmente falando com seus pais. Contrapondo-se a primeira sequência marcada pela extrema disciplina, o que há diante da tela agora é esse lembrete de uma humanização, de como aquelas figuras são frágeis (não mais eles estão em seus uniformes, mas de cueca apenas) e foram tiradas de seus mundos. Neste mesmo sentido, nem a câmera segue o mesmo formalismo de antes, adotando uma forma mais livre nesta sequência, enquanto a trilha sonora também vai de encontro a uma certa melancolia. Progressivamente, veremos aqueles cadetes em planos nos quais estão chorando (ou segurando ele), como se quebrassem mentalmente diante de tantas ordens a serem seguidas.

No fim, vale também falar sobre o uso do foco e do fora de foco feito por Evstigneev. Nas cenas que se passam na academia, esta escolha formal passa a ideia de que as crianças, apesar de perderem sua autonomia e servirem um bem maior, elas, assim como operários em um modelo fordista, não possuem visão do todo que elas participam. Elas são treinadas apenas a olharem para frente, não viverem em comunidade com o colega do lado, prezando-se pela imobilidade. Logo, a única visão que o diretor nos concede é a mesma que a daquelas crianças. 

Já no plano final, este mesmo sentimento é potencializado, uma vez que o ambiente não mais é a escola, mas a rua, com um dos rapazes em serviço, imóvel. Só que agora, ao seu fundo, está o povo, enquanto uma voz fora do quadro fala em protesto contra o governo. Por essa composição, fica bastante evidente, a nível imagético, a oposição gerada pelo intenso fluxo de pessoas no fundo, com autonomia, enquanto o cadete está imóvel, sem poder expressar um sentimento diante do efusivo discurso. Estaria a lavagem cerebral já feita ou ele estaria absorvendo o conteúdo daquelas palavras?  

Botões Dourados (Золотые пуговицы) — Rússia, 2020
Direção: Alexey Evstigneev
Roteiro: Alexey Evstigneev
Duração: 20 mins

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais