“Os vendedores representam o trabalho penoso, o anonimato e a impotência da vida moderna, mas talvez também todos os anseios incipientes que estão por trás do prosaico negócio de vender produtos produzidos em massa e obedecer a ordens.” Achei esse escrito no site The Caravan, sem autoria, enquanto procurava por mais informações sobre A Clerk’s Story (Dilip Kumar), conto que originou o filme indiano dessa crítica, Nasir. Citá-lo me parece essencial para compreender o modo como o diretor Arun Karthick conduz sua mise-en-scène.
Afinal, trata-se de uma narrativa que progride na base da paciência, construída a partir do cotidiano visto de uma maneira intimista, havendo mais preocupação com os pequenos e banais gestos do que eventos grandiosos. De mesmo modo, não há tanto espaço para falas, sendo mais para ações. Resumidamente, acompanhamos um dia na rotina do vendedor Nasir (Valavane Koumarane), desde o momento em que ele acorda, até o fim do dia. A questão aqui é que a vida de deste homem não existe só a partir do momento em que o filme se inicia — assim, como por todo o cinema, obviamente. Presume-se que trata de uma rotina já exercida há anos, realizada mecanicamente e diria até conformista.
É exatamente isso que é possível ver na direção minuciosa de Karthick. Sempre optando por planos fixos e raros movimentos sutis, o diretor valoriza a banalidade do dia-a-dia. Se muitos filmes ou séries de TV normalmente cortam, através da montagem, o caminho de um personagem indo do ponto A ao B, existe aqui uma necessidade de mostrá-los. As caminhadas silenciosas do protagonista revelam a situação de um homem que vive uma vida medíocre, algo que é representado pelo próprio ambiente das ruas que passa, sempre por vielas vazias com paredes desgastadas, complementando seu estado de introspecção. No mesmo sentido, o aspecto quadrado da tela também reforça este aprisionamento ao cotidiano, ao mesmo tempo em que nunca permite que o foco também se distancie de Nasir.
Como todo trabalhador atarefado, as fugas mentais e físicas se dão através dos pequenos atos. Por isso, a direção faz questão em prolongar tanto os momentos em que ele vai fumar, assim como as cenas em que ele envia cartas para sua esposa ou pratica algum ritual religioso. Nestes últimos, Arun filma da maneira mais íntima possível, como planos-detalhes nas mãos e pés. Esta aproximação da câmera com Nasir reside justamente quando ele está mais humanizado e menos um trabalhador automatizado que obedece ordens. Não à toa, para uma história de poucas falas, a leitura mental das cartas sendo feita em voice-over se mostra em consonância com este sentimento de que sua autonomia está associada a um estado mental. Outro ponto a ser notado é o fato de que por boa parte da narrativa não há trilha sonora, escolha estética que reforça a monotonia do dia-a-dia. Em contrário, ela surge quando Nasir está em seu momento individual de reza, aquele no qual ele se sente vivo e, portanto, pede uma música.
Porém, nem tudo é perfeito em Nasir e alguns pontos nunca se desenvolvem propriamente, como a subtrama com o filho que sofre algum tipo de deficiência, sendo o único propósito de sua existência o aumento de empatia com o protagonista por ser mais uma dificuldade que ele enfrenta. Se afastando do roteiro e indo para o lado imagético, há uma analogia feita com relógios que faz parte do início da narrativa, mas posteriormente é deixada de lado — e, pelo que li, o tempo é um elemento crucial do conto no qual o filme se baseia. Aliás, o quesito temporal até existe muito na adaptação, mas de outra forma, se dando principalmente pela duração dos planos, o que gera a sensação de que o dia na vida deste trabalhador realmente parece prolongada.
No fim, após todo esse acompanhamento por parte do espectador com a vida de Nasir, surge um elemento que até então não havia dado cara na trama, pelo menos não explicitamente, que é o político-religioso. E nem faria sentido que aparecesse também, visto que no dia-a-dia atarefado do protagonista não há exatamente espaço para este tipo de preocupação. Com este acontecimento, toda a narrativa se ressignifica. Afinal, todo seu isolamento, suas caminhadas pelas ruas vazias, as sequências nas quais é ignorado/menosprezado pelos jovens, seu próprio trabalho agora fazem parte de um contexto de perseguição religiosa. É impossível não sentir a sensação de revolta quando, após todo aquele dia de trabalho, ele é injustamente perseguido por sua condição. Mas a vida é assim, por mais que sejamos alienados ao mundo, não há como fugir de seus impactos. Atos políticos (e escolher uma religião é um) nos afetam. Eis aí uma dura realidade: o trabalhador segue suas tarefas, sofre inúmeras dificuldades e, no fim das contas, é atingido por algo que vai além dele. O mundo injusto de Nasir é aquele no qual sofrem diversos religiosos na Índia.
Nasir (Índia, Países Baixos, Singapura, 2020)
Direção: Arun Karthick
Roteiro: Arun Karthick
Elenco: Koumarane Valavane, Sudha Ranganathan, Yasmin Rahman, Bakkiyam Sankar
Duração: 75 minutos