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Crítica | Suprema

por Ritter Fan
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A notória juíza da Suprema Corte americana Ruth Bader Ginsburg, no mesmo ano em que foi homenageada com um excelente documentário sobre sua vida e tudo o que ela fez na luta pela igualdade de gêneros em seu país, ganhou um longa de ficção dirigido por Mimi Leder (Impacto Profundo, A Corrente do Bem) e protagonizado por Felicity Jones (A Teoria de Tudo, Rogue One) focado no início de sua carreira ativista. Quem já assistiu Marshall, de 2017, estrelado por Chadwick Boseman no papel de Thurgood Marshall, também advogado de causas sociais – especificamente a segregação racial – e que seria igualmente indicado a juiz da Suprema Corte dos EUA, reconhecerá não só a temática, como também a luta e até mesmo a estrutura narrativa. E isso não é intrinsecamente ruim, que fique claro, mas sim apenas uma constatação.

Assim como Marshall lutou, contra todas as probabilidades, para tornar-se advogado e ter o direito de falar perante os Tribunais, algo que não era possível em todos eles, se é que é possível acreditar em algo tão absurdo assim (e sim, infelizmente é perfeitamente possível acreditar), Ruth teve que enfrentar o preconceito do homem branco que estabelecia, literal e legalmente, que “lugar de mulher é na cozinha”. Se o leitor revirou os olhos agora, apenas assista Suprema e tente racionalizar os argumentos misóginos trazidos pelos inimigos de RBG (ela tornar-se-ia um ídolo pop já bem mais velha, batizada de The Notorious RBG) e tente diminuir o trabalho de formiguinha da protagonista em derrubar essas pré-concepções arraigadas na sociedade americana de uma época nada longínqua, já que estamos falando do final dos anos 50 até meados dos anos 70.

O roteiro de Daniel Stiepleman, sobrinho na vida real de Ruth Bader Ginsburg, faz um recorte bem preciso e deliberado, estabelecendo o começo da história com sua tia entrando em Harvard já casada com Martin Ginsburg (Armie Hammer, de A Rede Social e Me Chame Pelo Seu Nome), estudante do segundo ano da mesma faculdade, e já mãe da pequena Jane (vivida quando adolescente por Cailee Spaeny, que fez Vice no mesmo ano de 2018) e seguindo-a, por meio de elipses temporais até seu primeiro caso como advogada, defendendo um homem que foi acusado de sonegar impostos porque tentara deduzir valores gastos com sua mãe doente com base na legislação que permitia que cuidadores assim o fizessem, mas, apenas, cuidadoras mulheres, já que homens “não podem” ter essa função. Em outras palavras, um caso eminentemente fiscal, mas com pano de fundo segregacionista, serve de porta de entrada para que os Ginsburgs (seu marido é peça fundamental na narrativa e na história verdadeira) desbravem esse caminho e Ruth, então, possa estabelecer-se como a grande e fundamental ativista que foi.

Ao circunscrever o longa a esse período, Stiepleman abriu espaço para que a narrativa tivesse tempo para abordar todas as dimensões da protagonista, de estudante aplicada a mão cuidadosa e esposa amorosa, desenvolvendo-se em mulher frustrada pelas portas fechadas por homens que não lhe dão qualquer oportunidade a professora e, finalmente, advogada brilhante. Com isso, Felicity Jones tem a oportunidade de brilhar em uma performance forte, mas que, ao mesmo tempo, não chama artificialmente atenção para si mesma, inclusive abrindo espaço para Hammer e também Spaeny terem seus momentos, já que a dinâmica de família é um componente essencial da obra.

Mimi Leder, por seu turno, percebe muito claramente o material que tem em mãos e empresta uma visão muito pessoal e até discreta de umas das personalidades mais importantes da história jurídica recente dos EUA. Leder sabe quando usar imagens para estabelecer seu tom, algo que fica claro desde a excelente abertura em que um mar de pernas e pés vestidos por calças e sapatos escuros deixa entrever um cor solitária que é Ruth em meio a homens em seu primeiro dia em Harvard ou na forma como ela usa o normalmente doce Sam Waterston (o Sol Bergstein de Grace and Frankie), no papel de Erwin Griswold, reitor da faculdade, para representar o homem que acha que faz um favor às mulher ao deixá-la cursar Direito e, por isso, se considera a pessoa mais correta e menos preconceituosa do mundo. Em outras palavras, por grande parte da projeção, a diretora consegue estabelecer um excelente equilíbrio entre o “mostrar” e o “dizer”, mesmo quando entra o inevitável “juridiquês”, evitando que o longa passe a impressão de ser expositivo ou catequizador.

O que detrai um pouco da experiência é o que chamo de “paraquedismo”. Alguns personagens aparecem na trama sem qualquer construção anterior e no momento conveniente para que a trama caminhe. Se a advogada Dorothy Kenyon de Kathy Bates (Louca Obsessão, Titanic) é pelo menos citada antes como parte de uma aula que Ruth profere, tornando sua simpática ponta minimamente esperada, o mesmo não acontece com Melvin “Mel” Wulf (Justin Theroux, o protagonista de The Leftovers), advogado e líder da ACLU, sigla de American Civil Liberties Union (ou, em tradução direta, União Americana das Liberdades Civis) ou mesmo com James H. Bozarth (Jack Reynor, de Detroit em Rebelião e Midsommar), que tem sua posição de “vilão” diminuída a quase nada ao final justamente por não receber sequer alguns minutos breves de desenvolvimento em momentos anteriores. Tudo bem que a história é narrada a partir de Ruth (não por Ruth, que fique claro), mas, da mesma forma que o longa inteligentemente abre espaço para Griswold, deveria ter também se preocupado com os demais coadjuvantes.

No entanto, Suprema (o título em português é esperto, mas o original é muito melhor e mais significativo), faz muito bem o que se propõe a fazer, que é mostrar a “origem” de Ruth Bader Ginsburg e evidenciar com fatos e números a desigualdade artificial e legislativamente estabelecida entre os sexos. Uma prova de que o filme de Mimi Leder realmente funciona é que ele no mínimo deixa o espectador com vontade de conhecer melhor a protagonista e, em muitos aspectos, até pede por uma continuação considerando a rica e importante vida que RBG levou.

Suprema (On the Basis of Sex, EUA/China/Canadá – 2018)
Direção: Mimi Leder
Roteiro: Daniel Stiepleman
Elenco: Felicity Jones, Armie Hammer, Justin Theroux, Kathy Bates, Sam Waterston, Cailee Spaeny, Callum Shoniker, Jack Reynor, Stephen Root, Ronald Guttman, Chris Mulkey, Gary Werntz, Francis X. McCarthy, Ben Carlson, Wendy Crewson, John Ralston, Arthur Holden, Angela Galuppo, Arlen Aguayo-Stewart, Holly Gauthier-Frankel, Tom Irwin, Ruth Bader Ginsburg
Duração: 120 min.

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