- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos demais episódios da série.
Quando o título do episódio apareceu na tela, foi como se tudo o que veio a seguir no que se refere a Ruby e Christina ficasse completamente escancarado para mim. Considerando as diversas alusões literárias nada discretas de Lovecraft Country, Strange Case só poderia referir-se ao começo do título original do clássico O Estranho Caso de Dr. Jekyll and Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson, e a promessa de William a Ruby no episódio passado de mudar a vida dela para sempre em uma ambientação como a da série logo criou a conexão para a transformação que os primeiros segundos de projeção confirmariam: a irmã de Leti, agora, era uma mulher branca, com todos os privilégios que isso acarreta e que o episódio se esbalda em mostrar.
E é claro que, dentro do tema da metamorfose e considerando tudo o que acontece debaixo da rubrica da magia, algo que, a essa altura do campeonato, presumo que todos os espectadores já tenham se acostumado, a revelação final de que Christina, na verdade, era William o tempo todo era algo mais do que esperado. Na verdade, era uma inevitabilidade, uma conclusão lógica para toda a questão de “vestir a pele” de poder, por assim dizer. Ruby era o nível mais baixo da hierarquia dos privilégios por ser negra e mulher, subindo alguns vários degraus ao tornar-se branca. Christina já era branca, então sua condição de desvantagem existente era que ela era uma mulher, algo que ela corrigiu criando sua versão masculina, William, de forma a tornar possível seu projeto de tomada de poder. Ruby, claro, é um instrumento nesse seu projeto e o relacionamento de William/Christina com Ruby – agora também Hillary, vivida por Jamie Neumann, a mesma atriz que, em Whitey’s on the Moon, fez uma ponta como a dona dos cachorros e do apito naquele vilarejo tenebroso – pode ser parte do jogo ou não, verdadeiro ou meramente utilitário. Isso é ainda algo a ser visto e explorado mais para a frente.
Com essa abordagem ousada, transformando uma negra em uma branca, o tema do preconceito racial, que ficou um pouco de lado em A History of Violence, volta com força total, algo que fica muito bem ilustrado pelo que Ruby diz a William: em sua experiência como branca em um bairro negro, ela percebeu o medo dos negros por ela ser branca. Essa afirmação é um tapa na cara – ou melhor, um chute bem dado na boca do estômago – de quem vê o racismo como algo que acontece só com os outros é que é algo pontual. O racismo sistêmico pode ser todo ele resumido no que Ruby experimenta como Hillary, seja nesse começo confuso, com ela ainda desnorteada, seja depois tentando lidar com Tamara (Sibongile Mlambo) e tendo atitudes conflitantes, seja no clímax da vingança contra seu chefe que, antes, tentara estuprar Tamara.
Mas a metamorfose também é abordada por outros lados. O primeiro e comparativamente menos importante – mas mesmo assim potente – é a reação de Tic quando ele deduz, pelo olhar de seu pai, o que acontecera com Yahima. A erupção de violência descontrolada é impressionante e faz convergir anos e anos de abuso de Montrose sobre ele, transformando o pacato e por vezes até ingênuo Tic em um trator que teria cometido assassinato ali mesmo não fosse a interferência desesperada de Leti. Aliás, achei genial o toque do roteiro de Misha Green, Jonathan Kidd e Sonya Winton em armar Leti com um taco de beisebol quando ela vai procurar Tic no porão logo em seguida, demonstrando o pavor que até ela estava sentindo, o que de certa forma remete à possessão de Tic pelo fantasma do cientista nazista.
No entanto, o foco dessa segunda narrativa fica mesmo por conta da metamorfose de Montrose depois de ser espancado pelo filho. Procurando Sammy para satisfazer o que parece ser seus desejos primais, como uma verdadeira válvula de escape, Montrose recusa-se a realmente assumir quem ele é. A paralelização de seu drama com o de Ruby, também querendo entender quem exatamente ela quer ser, é espetacularmente bem feito, com a direção de Cheryl Dunye trabalhando muito bem a progressão da narrativa sem redundâncias e sem fugir do assunto.
Apenas talvez o fato de Sammy simplesmente ser um não-personagem e ter mais detalhes sobre ele revelados de maneira um tanto abrupta aqui, algo que deveria ter sido construído antes e não necessariamente “revelando” a relação dele com Montrose, é que me deixou incomodado, algo que mostra que os coadjuvantes menores parecem ter funções de preenchimento de espaço, sendo usados apenas quando necessário e para o objetivo específico do ponto a ser discutido. Com isso, mesmo que a libertação de Montrose no baile/concurso drag tenha sido um belo momento que Michael K. Williams tira de letra como grande ator que é, a conexão sentimental dele com Sammy sofre um pouco por seu parceiro não ter sido brindado com qualquer tipo de desenvolvimento fluido que permita a criação de empatia para além do que o capítulo exige.
Mesmo que a temporada até aqui tenha mostrado muita qualidade nos efeitos especiais, criando uma fusão quase perfeita da tecnologia atual de computação gráfica com as exigências mais “horror trash” que os roteiros criam, Strange Case é um destaque. A escolha de se fazer a metamorfose de Ruby como se ela fosse um lobisomem (lobimulher?) mantém o gore da série ao mesmo tempo que acentua o preço cobrado pela liberdade que ela almeja. E a mistura de efeitos práticos com digitais é um espetáculo à parte, digno dos melhores exemplares oitentistas do gênero como Grito de Horror ou A Mosca.
Estamos já na metade da temporada inaugural e, ainda que muitas peças tenham sido devidamente encaixadas, outras várias continuam gerando perguntas. O plano de Christina é a maior delas, lógico, mas a conexão da coreana Ji-Ah com toda essa história – algo que o telefonema de Tic dá a entender que é bem mais profunda do que apenas uma relação amorosa e que carrega também a dualidade entre a figura positiva dela de princesa alienígena que vemos no sonho dele na abertura do primeiro episódio e a negativa de soldada na alucinação na mansão no segundo episódio – é o que mais atiça minha curiosidade no momento. E o melhor é que, mesmo que um título como Strange Case permita a dedução da temática de determinado episódio, a grande verdade é que o jogo pode ser jogado de qualquer jeito, já que Misha Green não parece muito disposta em deixar as regras claras para os espectadores. E que ela continue assim!
Lovecraft Country – 1X05: Strange Case (EUA, 13 de setembro de 2020)
Showrunner: Misha Green (baseado em romance de Matt Ruff)
Direção: Cheryl Dunye
Roteiro: Misha Green, Jonathan Kidd, Sonya Winton
Elenco: Jurnee Smollett, Jonathan Majors, Michael K. Williams, Aunjanue Ellis, Abbey Lee, Jada Harris, Wunmi Mosaku, Deron J. Powell, Jamie Neumann, Sibongile Mlambo
Disponibilidade no Brasil: HBO
Duração: 60 min.