Embates entre seres humanos, conflitos psicológicos, histórias curtíssimas e situações bastante peculiares. Esse é o mote de Aranhas, do escritor brasileiro Carlos Henrique Schroeder, uma coletânea de 32 contos que tem como direcionamento, alegorias com os mais diversos aracnídeos. Jamais diria que o livro não é bom. Não é trabalho da crítica dizer que uma narrativa presta ou não, tampouco afirmar que uma obra literária deva ou não ser consumida ou anulada, talvez cancelada, para utilizar a nomenclatura mais usualmente contemporânea. Lido vorazmente desde que a publicação chegou em minhas mãos, a decepção tomou-me por completo, mas não por falta de qualidade do material. O problema foi de quem vos escreve. Sem atender aos meus anseios contemplados apenas na sinopse, Aranhas é um excelente exercício da estética literária, conjunto de textos que chamaria de “conceitual”, mas que infelizmente não funcionou em minha busca por metáforas aracnídeas embebidas no mais puro horror e altas doses de crítica social.
Reflexão não falta. Ousadia do escritor em ultrajar determinados formatos literários também. Em certo ponto, um conto sobre uma vendedora de shopping e sua supervisora me tomou de indignação imediata no desfecho. Colonizado pelos clichês que adoramos nos filmes e, principalmente, na atual cultura de abundância das séries, campo de produção que encontra-se estufado de formatos repetitivos, esperava uma condução trivial de começo, meio e fim amarrados, mas o autor brinca com as nossas expectativas e emprega uma dose cavalar de nonsense que me revoltou tanto, mas depois me fez rir copiosamente. Retomei a história, li pausadamente o final e entendi que essa era a proposta do autor: “sacanear” com as expectativas banais de seu leitor. Cheio de trechos tomado por erudição, Aranhas é uma coletânea de alguém que pesquisou bastante sobre o assunto, haja vista a quantidade de pintores, filósofos e autores mencionados, não aleatoriamente, mas hiperconectado com os conteúdos das histórias.
Para Carlos Henrique Schroeder, quando escrevem, os escritores criam teias diárias, como as aranhas o fazem muito bem, só que diferente das criaturas de oito patas, esplendorosas por ter o poder de ativar os nossos medos mais profundos, tecemos narrativas. Os escritores de ficção, nós, críticos jornalísticos e acadêmicos, enfim, qualquer um que se proponha a escrever como diletantismo, como terapia, etc. Depois que topou com uma aranha consideravelmente aberrante em Garopaba, zona litorânea de Santa Catarina, durante um passeio pelo local com a família, o escritor resolveu pesquisa-las. Foi dai o surgimento da coletânea, tema que de acordo com algumas entrevistas realizadas no período de divulgação do livro, encerrou-se com Aranhas. Não há interesse em explorar novamente o assunto, conteúdo que não é esgotado, obviamente, mas é apresentado num amplo panorama de alegorias já suficientes para alguém que se dedicou ao tema.
Importante ressaltar é o caráter coparticipante de sua literatura, pois geralmente o narrador dialoga com o seu leitor e pede consumidores que saibam preencher as brechas deixadas em alguns contos que terminam, tal como o caso mencionado anteriormente, de maneira brusca, inesperada, com um rumo que na dramaturgia chamamos de anticlimático. Não é por falta de talento, acredito, pois como também já delineei antes, as estratégias narrativas de Aranhas parecem todas flertar com o desejo proposital do seu autor em nos provocar, manipular as nossas emoções e expectativas. Cada conto tem o nome científico de uma espécie. É assim que essa publicação da Editora Record, ao longo de suas 192 páginas, desenvolve os seus temas aparentemente aleatórios, distribuídos entre críticas que vão da predação humana aos hábitos solitários dos indivíduos que parecem nunca se encontrar, nem consigo mesmo, nem com o outro, nas atuais sociedades ameaçadas ao escapar constantemente dos esquemas civilizatórios que as regem.
Para quem conhece minimamente a carreira do autor, sabe que suas abordagens críticas são permeadas por apontamentos políticos alegóricos, mas certeiros em seus alvos, postura que se mistura aos contraditórios contos que parecem refletir um país a caminho do que convencionamos a chamar de medievalismo. A história da professora tutora e do aluno é pura dominação, predatória como uma aranha em caça, intensa como a recriação de Gregor Samsa, de Franz Kafka, personagem do clássico A Metamorfose, aqui transformado num aracnídeo. O desenvolvimento das garotas de programas é puro territorialismo, as ruínas familiares apresentadas também possuem caráter predatório, com aranhas a todo instante, sutis ou explicitas, mas impregnadas em cada página desta coletânea peculiar que estruturalmente, investe em algumas histórias bem curtas e uma mais extensa, desde o começo até o desfecho da publicação.
Também conhecido pela coletânea As Certezas e As Palavras, Carlos Henrique Schroeder já escreveu romances, Histórias da Chuva e As Fantasias Eletivas, publicações com boa circulação no bojo do consumo de literatura brasileira contemporânea. Como traz a apresentação de Aranhas, ele é um escritor que tece histórias sobre fugas da realidade, dubiedade, complexidade de relações, conflitos internos e externos que gravitam em torno de personagens (grifo meu), etc. Ganhador de uma bolsa da Petrobrás e com textos traduzidos para várias línguas estrangeiras, Schroeder também pode se gabar de ser ganhador de um troféu do Prêmio Clarice Lispector, honraria merecida para alguém que se propõe a trabalhar dentro de um campo, referenciando As Regras da Arte de Pierre Bourdieu, cheio de estratégias e táticas para a sobrevivência do escritor profissional, no Brasil, aquele que “vive” da literatura, espaço cada vez mais segmentado, minado pela falta de incentivo educacional, devastado pelos altos índices de falta de cultivo da leitura.
Aranhas (Brasil, 2020)
Autor: Carlos Henrique Schroeder
Tradução: Leonardo Alves
Editora no Brasil: Record
Páginas: 190