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Crítica | Estou Pensando em Acabar com Tudo

por Luiz Santiago
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Cobrar sutileza de uma obra alegórica é como irritar-se porque a água molha, porque o fogo queima ou porque a noite é mais escura que o dia. Não faz sentido. A proposta de representação da alegoria é justamente distanciar-se da sutileza para inverter, remodelar ou até corromper determinados símbolos e arquétipos sociais, filosóficos, culturais, literários a fim de chegar ao outro lado de um rio narrativo. E histórias com essa abordagem não são nenhuma novidade para Charlie Kaufman, diretor de Sinédoque, Nova York e Anomalisa, além de roteirista de obras como Quero ser John Malkovich e Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças.  Mais uma vez longe da sutileza, o cineasta nos faz ver a vida, as possibilidades, as aproximações e os devaneios através dos olhos de alguém, tudo capturado e projetado para outros indivíduos, em um outro lugar. Uma mise en scène num mise en abyme.

Autores diferentes aproximaram-se da alegoria para contar suas histórias no cinema. Alguns empurraram essa abordagem para uma grande valorização do símbolo, refigurando-o de forma total, como fizeram os surrealistas. Outros intercalaram seus projetos com capítulos metafóricos isolados, a fim de fortalecerem um tema. Já diretores como Kaufman fazem questão de adotar uma narrativa de choque entre o mar simbólico que tem em mãos e a realidade dele e do público. É aí que reside a maior recusa de alguns espectadores em mergulhar num filme como Estou Pensando em Acabar com Tudo, exatamente pelo que ele é. Afinal de contas, se um roteiro fala sobre física, teoriza sobre luz, ronda a fortuna crítica em torno de Uma Mulher Sob Influência (1974) e debate poesia e filosofia da linguagem, tem que haver uma explicação lógica, correta, definitiva, perfeitamente compreensível, não? Pois é: não.

E não é só a obra de Kaufman que adota esse caminho. Obras com a mesma ferramenta narrativa utilizam a crueza da realidade para representar (e essa palavra é importantíssima para este filme) o que quer que seja. Você verá isso de As Crônicas de Nárnia até A Última Tempestade. De A Revolução dos Bichos até O Discreto Charme da Burguesia. De A Raposa e as Uvas até Estou Pensando em Acabar com Tudo, com a diferença que a obra de Kaufman toma seu tempo para brincar com os temas trazidos do livro homônimo de Iain Reid, transformando-os em real matéria de cinema ao unir temáticas narrativas e gêneros: família é terror; amor é musical; lembrança diegética é animação; conversa reflexiva entre duas pessoas é road movie; morte é um híbrido entre teatro musical e discurso de premiação.

O olhar para o que foi (ou poderia ter sido) a vida é representado aqui nas muitas variações possíveis de figurino, de localização de pessoas à mesa, de uma atitude ou rumo de uma conversa importante da qual um homem moribundo se lembra. E não há mistério algum nisso. Toda memória do passado é revestida de emoções e fantasias. Nós nos lembramos de coisas mas não necessariamente temos certeza dos detalhes. A roupa, os acessórios, a maquiagem ou mesmo o rosto de alguém, numa memória, pode confundir-se com essa mesma pessoa em outra fase da vida. Ou pode ser até mesmo a nossa representação no corpo de outro alguém, a ponto desse ser imaginário olhar para uma fotografia nossa e achar que está vendo a si mesmo. O que Charlie Kaufman faz neste filme é organizar, num fluxo lógico, as conversas, as memórias e as projeções de alguém que está morrendo, ora assustando-se e enraivecendo-se; ora confortando-se e felicitando-se com uma lembrança.

Morrer também é uma aventura. Lembrar do que se viveu é apenas o combustível inicial para essa viagem. Através da câmera, porém, tudo isso ganha outros significados, toca em outras áreas, faz outras relações. E eu poderia aqui deixar a crítica de lado para começar uma análise, tentando dissecar os motivos pelos quais os únicos animais que aparecem na fazenda são as ovelhas e o estranho cão da casa. Por que um antigo hobbie de juventude desse indivíduo está justamente no medonho porão da casa, com uniformes escolares sendo lavados. Por que uma possível versão mais jovem e de braços mutilados de uma mulher dá um conselho para a sua versão mais velha (“você não precisa seguir, você pode ficar aqui“)… Mas o sentimento que essas coisas nos trazem falam mais do que um pequeno dicionário simbólico sobre o filme. Eles compõem um todo com uma mensagem maior que as partes, como sempre.

Na obra, esses ingredientes formam uma massa de pensamento confuso, atemporal — a organização dele é o toque metalinguístico da fita, já que o filme chama a atenção para si mesmo como agrupador e reprodutor de memórias e fantasias, fazendo também a sua própria autocrítica no caminho — e que serve como fim da linha para diferentes gerações, majoritariamente iluminadas por cores frias, muita preocupação com os afazeres cotidianos, extrema solidão na velhice e vontade de que “tudo isso” acabe o quanto antes. Assim como o pai, a expressão do desejo de não querer lembrar-se de mais nada. A riqueza, a dor e a felicidade que cabe em um último suspiro. Uma elegia, afinal.

Estou Pensando em Acabar com Tudo (I’m Thinking of Ending Things) — EUA, 2020
Direção: Charlie Kaufman
Roteiro: Charlie Kaufman (baseado na obra de Iain Reid)
Elenco: Jesse Plemons, Jessie Buckley, Toni Collette, David Thewlis, Guy Boyd, Hadley Robinson, Gus Birney, Abby Quinn, Colby Minifie, Anthony Robert Grasso, Teddy Coluca, Jason Ralph, Oliver Platt, Frederick Wodin, Ryan Steele
Duração: 134 min.

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