Lembro de recentemente ler uma fala do ambientalista Ailton Krenak em uma entrevista que ele comenta sobre como “os brancos precisam aprender a pisar suavemente na Terra”, uma crítica às escolhas feitas por quem tem poder em nossa sociedade. Uma frase forte e que me veio repetidamente à cabeça enquanto assistia A Forma do Que Está por Vir.
Isso me ocorreu porque a obra dirigida em parceria por J.P. Sniadecki e Lisa Malloy retrata como é a vida de Sundog, um cavalheiro idoso e branco, no deserto de Sonora, localizado na fronteira dos Estados Unidos com o México. Em um primeiro olhar, o velho protagonista parece viver completamente isolado em meio à natureza árida e hostil, sem qualquer tipo de conexão com a sociedade. Por conta disso, temos nossa curiosidade despertada logo de cara para tentar compreender como alguém em idade avançada sobrevive nesse ambiente.
A câmera na mão, acompanhando os passos de Sundog, assim como os planos detalhes, focando desde a preparação de uma bebida até a forma que alimenta seus porcos e gatos, nos ajudam nessa compreensão e a entrar na atmosfera do longa, onde tudo parece acontecer com calma e tranquilidade, longe do ritmo frenético das grandes cidades. Conforme avançamos, entretanto, percebemos que a aparente escolha de completo desligamento do indivíduo enquanto ser social não é exatamente como o protagonista leva seus dias.
Ainda que viva isolado em uma casa no meio de um deserto, sua conexão social não foi completamente rompida. Ele possui energia elétrica, o que possibilita a utilização do rádio e de lâmpadas, CDs, livros e até mesmo uma bela caminhonete que utiliza para travessias mais longas. Além disso, também descobrimos ser dono de um telefone celular, que o vemos utilizar duas vezes para contatar, aparentemente, uma pessoa com quem se importa (ele dá dicas de como melhorar de um mal-estar e a convida para visitá-lo no outono). Nossa compreensão de seu universo vai ficando mais nítida pouco a pouco e, assim, é possível traçar a linha que liga o modo de vida de Sundog à frase de Krenak referida no início deste texto. Não há uma abdicação dos prazeres e facilidades propostos pela vida moderna, somente uma tentativa de vivência mais harmônica com a natureza, o melhor entendimento de seu lugar em meio às demais espécies.
Ele reforça esse pensamento durante uma das poucas falas do filme, quando comenta sobre o quanto considera a vida surgida em nosso planeta nos últimos quatro bilhões de anos algo único e maravilhoso. Ao mesmo tempo, se mostra muito incomodado quando, em suas palavras, “uma escavadeira estraga, em trinta minutos, algo que demorou quatro bilhões de anos para entrar em equilíbrio e harmonia”. O que nos leva para outro ponto representado na obra que é a ameaça da patrulha da fronteira em seu modo de vida e no ecossistema ao redor.
Apesar de aparecer em diversos momentos, seja com seus veículos ou através das construções de antenas, que também servem de representantes do ideal da sociedade moderna, considero o ponto mais fraco da película justamente pela pouca sensação de ameaça que nos passa. Sundog se mostra consternado com eles e até mesmo dispara com um rifle em um aparente espaço dos patrulheiros em uma determinada cena, mas nada capaz de transmitir a mesma indignação sentida pela personagem.
Todavia, o problema não influencia negativamente o filme a ponto de perdermos de vista a mensagem principal. Não há necessidade de buscarmos um progresso desenfreado e sem sentido, abusando e destruindo nosso planeta em nome de algo tão nefasto como a ganância. Somos moradores deste lugar e integrantes de um ecossistema muito maior do que qualquer vontade individual. Portanto, aprender a pisar com mais suavidade na Terra é um ensinamento que pode levar nossa raça a reencontrar a harmonia com nosso lar, algo perdido há tanto tempo que já parece termos esquecido.
A Forma do Que Está por Vir (A Shape of Things to Come) – EUA, 2020
Direção: J.P. Sniadecki, Lisa Malloy
Roteiro: J.P. Sniadecki, Lisa Malloy
Duração: 77 min.