Coceira nas costas. Sabe, aquelas? Cisma de aparecer num ponto em que a gente dificilmente conseguirá coçar sem ajuda e, se tentamos ignorar, torna-se mais intensa, como se estivesse fazendo birra: “ou você faz o que deve ser feito ou eu vou tornar a sua vida um inferno“. Eh. Vivendo em 2020, o ano-símbolo da vida sendo um inferno, esse tipo de ameaça não nos abala mais. Mas se podemos evitar descer um outro ciclo… tanto melhor. E foi com esta determinação, em dado momento da inacabável quarentena, que decidi terminar um assunto já abordado por mim em dois outros textos aqui no Plano Crítico, tratando exclusivamente de artistas. Com este PP#39, fecho uma tríade que chamarei de Trilogia do Cancelamento, agora não falando sobre pessoas (como prometi, já encerrei essa abordagem), mas sobre obras de arte.
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Troca Justa: Arte Problemática Pelo Fingimento de que ela Nunca Existiu
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Já faz parte dos debates no Dia da Consciência Negra apontar o dedo e rir na cara de gente que partilha do pensamento morganfreemaniano: “se a gente parar de pensar no racismo, ele acaba“. É curioso, no entanto, que justamente entre esses SapienSensatoS surjam aqueles que engrossam o grupo dos que defendem ocultamento e retirada de importância histórico-artística de uma porção de obras de arte. O motivo é claro: trata-se de arte problemática. E por “arte problemática” entendam que a tal obra é uma ou mais das seguintes coisas: racista, fascista, xenófoba, machista, sexista, misógina, homofóbica, classista, gordofóbica, transfóbica; e também portadora de preconceito religioso, linguístico, cultural, com deficientes e muitos outros. Agora imaginem só isso: um mundo onde a gente vai começar a ocultar, cancelar, fingir que nunca existiu, negar a importância histórico-artística, qualidade técnica ou até a beleza de uma obra de arte porque ela endossa ou contém coisas terríveis que hoje combatemos.
Falta conhecimento e falta contexto aí. É preciso saber lidar com o preceito da Teoria da História de que o registro que essa disciplina faz de nossa civilização é aquilo que chamamos de “História dos Vencedores” e que por isso mesmo temos que ter uma visão crítica para tudo o que concerne a ela. Não é negando, jogando para baixo do tapete ou retirando de uma arte a sua importância que lutamos contra os problemas que essa arte traz. E acima de tudo, é preciso aprender uma boa lição com Hans-Georg Gadamer, quando falava sobre a natureza do fenômeno da compreensão: nós sempre interpretamos o mundo através de um lugar-e-espaço que possui vícios, preconceitos e valores próprios. É impossível nos deslocarmos desse ponto de partida. Torna-se necessário, portanto, entender que cada um pertence a um lugar histórico e que o nosso julgamento só realizará uma “fusão de horizontes” se procurarmos compreender qualquer obra a partir dessas diferenças.
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Arte Podre? Tô Fora! Pego Minha Arte Espiritual e Vou Embora!
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Por mais óbvio que isso seja, porém, há quem ainda acredite que “compreender“, “contextualizar” é sinônimo de “aceitar” e “passar pano” (spoiler: não é). E é baseando-se numa mistura de ignorância com orgulho que esse grupo passa a defender um apagamento da História e não o seu debate. Alguns chegam a ignorar que a linguagem artística ou simplesmente comunicacional é socialmente instável (obrigado, Van Orman Quine!) e que as coisas podem mudar de significado dependendo do tempo, contexto, povo ou cultura. A palavra “gay” para um falante de língua inglesa nos anos 1930 significava uma coisa, diferente daquilo que significa para os falantes contemporâneos. “Bixa” já foi uma ofensa grande para homens LGBT, mas a palavra foi pouco a pouco sendo ressignificada dentro da própria comunidade, comparativamente diminuindo o seu peso ofensivo hoje. “Bambi” significa algo ofensivo para torcedores do São Paulo, enquanto para outras pessoas é apenas um personagem da Disney. Ora, se a própria linguagem sofre mudanças a olhos vistos, no curto espaço da vida de uma pessoa, quem dirá as muitas ideologias e as muitas abordagens artísticas!
A defesa do cancelamento ou retirada de importância das artes problemáticas pode vir também por uma tríade de pensamentos cujo primeiro e mais estranho patamar é o da visão da arte como função “pura“, “mística“, feita com o propósito de desenvolver espiritualmente a humanidade. Este é o tipo de visão que deixaria até Hans Rookmaaker rindo por três dias antes de proferir que A Arte Não Precisa de Justificativa: ela tem valor pelo que é, não pelas funções que exerce (lembrando que o julgamento moral para a arte cabe na sua discussão, interpretação e problematização, mas não no julgamento da obra em si, uma vez que a disciplina que julga a arte como arte é a estética). Ou seja, se você se vê como “uma criativa obra de Deus”, terá um impulso íntimo, uma educação e um contexto histórico X para criar… mas esse mesmo ponto de partida irá mudar dependendo de suas crenças, inquietações pessoais, educação, experiência de vida, etc., um estilo de pensamento que, no fim das contas, cai na mesma conclusão de Wittgenstein (na linguagem) e Wollheim (na arte): artistas e obras de arte são condicionados por seu contexto externo, hábitos e habilidades.
O pulo do gato é: em vez de querer apagar essa arte, critique-a, contextualize-a, aponte seus problemas e jamais retire dela a importância que tem (se tiver alguma). Não é apagando a História e reescrevendo-a ao bel prazer dos mais profundos sentimentos que você vai pôr um fim nos inúmeros preconceitos e opressões do mundo. Isso, na História, tem outro nome. E pode ter certeza que não é “luta contra o preconceito e a opressão“.
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Essa História Não Tá Me Cheirando Bem
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O segundo patamar desse pensamento lacrocancelativo é a visão bobinha de que a História é algo que só anda para frente. Talvez iludido pela famosa “Linha do Tempo”, esse grupo parece crer que a existência, as criações e convivência humanas são uma progressão evolutiva. Desse modo, no presente, jamais caberiam obras de arte com as podridões, preconceitos, opressões e inúmeros outros horrores de “tempos passados e obscuros“. Fica então a pergunta: esses indivíduos têm acesso à internet? Assistem TV? Tem janela em casa? A questão, caros amigos, é que a História NÃO é nada parecida com uma linha do tempo. Sim, a nossa contagem cronológica é crescente, assim como o nosso avanço tecnológico. Mas esses são apenas ingredientes da História. Tire os olhos disso e observe a vida. A nossa Civilização. A Humanidade em 2020. Eu preciso desenhar para vocês a quantidade de coisas que a conjuntura contemporânea gerou e que se parecem com eventos de outra época? A História não se repete, mas cada época gera situações que dão frutos supostamente muito parecidos (embora com textura, peso, cor, sabores diferentes) com os de outra época.
No clássico História e Memória, Jacques Le Goff traz, ainda no Prefácio, algo similar à concepção que discutimos aqui, de que “hoje somos mais evoluídos, logo, não podemos permitir horrores artísticos criados no passado“. Deixo abaixo um trecho da fala dele sobre essa problemática de percepção temporal:
Até o Renascimento e mesmo até o final do século XVIII, as sociedades ocidentais valorizaram o passado, o tempo das origens e dos ancestrais surgindo para eles como uma época de inocência e felicidade. Imaginaram-se eras míticas: idades-do-ouro, o paraíso terrestre… a história do mundo e da humanidade aparecia como uma longa decadência. Esta ideia de decadência foi retomada para exprimir a fase final da história das sociedades e das civilizações; ela se insere num pensamento mais ou menos cíclico da história (Vico, Montesquieu, Gibbon, Spengler, Toynbee) e é em geral o produto de uma filosofia reacionária da história, um conceito de escassa utilidade para a ciência histórica. Na Europa do final do século XVII e primeira metade do XVIII, a polêmica sobre a oposição antigo/moderno, surgida a propósito da ciência, da literatura e da arte, manifestou uma tendência à reviravolta da valorização do passado: antigo tornou-se sinônimo de superado, e moderno de progressista. Na realidade, a ideia de progresso triunfou com o Iluminismo e desenvolveu-se no século XIX e início do XX, considerando sobretudo os progressos científicos e tecnológicos.
Depois da Revolução Francesa, à ideologia do progresso foi contraposto um esforço de reação, cuja expressão foi sobretudo política, mas que se baseou numa leitura “reacionária” da história. Em meados do século XX, os fracassos do marxismo e a revelação do mundo stalinista e do gulag, os horrores do fascismo e principalmente do nazismo e dos campos de concentração, os mortos e as destruições da Segunda Guerra Mundial, a bomba atômica – primeira encarnação histórica “objetiva” de um possível apocalipse –, a descoberta de culturas diversas do ocidente conduziram a uma crítica da ideia de progresso (recorde-se La Crise du Progrès, de Friedmann, de 1936). A crença num progresso linear, contínuo, irreversível, que se desenvolve segundo um modelo em todas as sociedades, já quase não existe. A história que não domina o futuro passa a defrontar-se com crenças que conhecem hoje um grande revival: profecias, visões em geral catastróficas do fim do mundo ou, pelo contrário, revoluções iluminadas, como as invocadas pelos milenarismos tanto nas seitas das sociedades ocidentais quanto em certas sociedades do Terceiro Mundo. É o retomo da escatologia.
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Nomeando e Enfrentando Demônios
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Huckleberry Finn. A obra de H.P. Lovecraft. Uma porção de livros de Agatha Christie. Toda a arte Antiga, Medieval e Moderna que louva a guerra, a caça, a morte dos mais fracos em batalha e a imolação de animais. O Nascimento de Uma Nação. A arte erótica, objetificadora e classista de toda a cerâmica ou tapeçaria da Antiguidade. …E o Vento Levou. Todas as esculturas, poemas e cantigas, de todas as Eras artísticas, que objetificam a mulher. O arco Shazam!: The Monster Society of Evil, assim como uma parte enorme de HQs da Era de Ouro. Praticamente todo o Teatro Clássico. O episódio Advanced Dungeons & Dragons de Community e um certo episódio de The Office (ambos representando criticamente o problema de que são acusados!). Toda obra arquitetônica, de qualquer período histórico, construída sob trabalho escravo ou opressão de um povo sobre outro. Uma grande parte do Rock. Uma grande parte da MPB, do Samba. Gigi. Uma grande parte do jazz e blues. Quase a totalidade da História do Hip Hop. Filmes de quase todos os grandes cineastas da História. Parte da obra de Hergé. A quase totalidade das Marchinhas de Carnaval da História do Brasil. Filmes de Leni Riefenstahl. A obra de Monteiro Lobato. Vários episódios de praticamente todas as séries de TV já produzidas. Praticamente toda a História da Moda. Parte do Cinema Soviético. Um número gigantesco de óperas. Parte do Cinema Brasileiro. Um número gigantesco de videogames. Todo e qualquer filme noir com uma Femme Fatale. Todos os filmes do gênero giallo. A maioria dos Melodramas. Uma parte enorme de toda a Arte Sacra. E finalmente… a Bíblia!
Se nós formos começar a cancelar, jogar fora, dizer que não é importante, censurar, fingir que não existe e tirar dessas obras de arte o valor estético e histórico que possuem… porque elas endossam “coisas problemáticas para os tempos atuais, e ninguém deve passar pano para obra racista, fascista, xenófoba, machista, sexista, misógina, homofóbica, classista, gordofóbica, transfóbica; e também portadora de preconceito religioso, linguístico, cultural, com deficientes e muitos outros“… então aí está a lista por onde a gente deve começar.
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“Vocês: …. / Eu: …”
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A humanidade não tem uma História bonita. A própria História da Arte é cheia de grandes horrores, de artistas podres a obras de arte com conteúdo ou contexto de criação que é um pior que o outro. Se você está disposto a apagar da História e censurar um episódio antigo de série com blackface, deixa eu te contar uma coisinha: a construção das Catedrais Góticas possuem, em seu contexto, uma quantidade muitíssimo maior de horrores do que um episódio desses, sabia? E que tal a gente sair negando a importância do estilo gótico, dizendo que a gente “não passa pano” para coisas com uma história feia, e que a arte só pode ser concebida para a elevação espiritual da humanidade? Você conhece o contexto de criação do Estado do Vaticano, com toda aquela arquitetura e arte incríveis? Você conhece o contexto histórico e principalmente os financiadores dos grandes murais sacros ou do teto da Capela Sistina?
A gente precisa seguir o conselho de Jürgen Habermas e olhar para as nossas tradições de maneira crítica, questionando, propondo caminhos de mudanças para que novos padrões sociais sejam construídos entre os indivíduos e a opressão passe a ser rejeitada na estrutura do sistema. Um livro ou um quadrinho é xenófobo, antissemita? Imprima-o com um prefácio que discute bem a obra! Se algo tem real problema conceitual/moral/ético/ideológico diante daquilo que hoje a nossa sociedade lida e discute, que se faça o necessário contexto, crítica, condenação e discussão, mas jamais a censura ou a negação da importância dessa obra! Chamemos especialistas para debater o problema e também discutir a arte como arte! Não é escondendo-a que os problemas que ela possui vão magicamente deixar de existir!
Um filme, uma série, uma ópera, uma peça é racista, misógina, homofóbica? Faça um prólogo ou epílogo que discuta o racismo (etc.) dessa arte, o impacto negativo que isso trouxe para a sociedade, independente das qualidades estéticas ou importância histórica da obra. Já viram Spike Lee falando sobre O Nascimento de uma Nação? Há uma tonelada de entrevistas dele falando sobre o filme, porque ele usou cenas deste clássico em Infiltrado na Klan. Notem que ele NUNCA nega a importância da obra de Griffith. O enorme ressentimento do diretor é com a falta de discussão e contexto para a obra, principalmente quando se lembra da aula em que viu o longa na faculdade, onde só se falou da grandeza estética e histórica, mas não se discutiu o seu lado podre. Ora, seria Spike Lee um “passador de pano para racistas“, por não cancelar O Nascimento de uma Nação? Por não negar a importância seminal desse filme para a História do Cinema? Ou seria Spike Lee alguém que entende muitíssimo bem a gênese da arte na qual ele se especializou e, sendo um cineasta, um homem negro, um ativista político, sabe da enorme necessidade de contexto e debates para esse tipo de filme?
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Anotei Tudinho Aqui!
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Se a nossa sociedade não entender o jogo entre tempos históricos diferentes, chamar as coisas pelo nome que elas são, dar-lhes contexto, apontar sua podridão, fazer-lhes críticas (sem tirar essas obras das livrarias, dos catálogos de streming, dos museus… apresentando os devidos debates para os REAIS problemas que elas tiverem), então estaremos vestindo a carapuça ditatorial e apagadora da História, com o lema: “se essa arte do passado é ofensiva para mim e os meus, não é importante e não deve mais existir“. O perigo que reside nisso é o seguinte: daqui a algum tempo, um outro contexto histórico e social vai surgir. E aquelas obras que você gosta, que falam ao seu coração, que dizem aquilo que você quer ouvir… entrarão no mesmo moedor, pois as forças no poder vão dizer que elas “não engrandecem o espírito da humanidade” e uma porção de outras besteiras desse nível. Lembre-se: contexto é tudo. E a arte, assim como o artista, é fruto de seu tempo. E se para você nada disso é válido e “tem que cancelar mesmo“, então tudo bem. Só não seja hipócrita e dê coerência à sua defesa: revolucione todo o seu arcabouço de entretenimento, colecionismo e apreciação da arte. Exiba uma lista do que sobrou “100% livre de quaisquer problemas sociais, históricos, sociológicos, antropológicos e ideológicos de conteúdo, concepção e produção“. E seja feliz ouvindo os mais variados ruídos de conexão radiofônica AM. Para você, deixo aqui um raciocínio de Walter Benjamin num de seus artigos sobre literatura e História da Cultura:
A natureza dessa tristeza se tomará mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. […] Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura.