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Crítica | Um Corpo que Cai

por Luiz Santiago
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Há uma atmosfera fantasmagórica, opressiva e desesperada em Um Corpo que Cai (1958), que quando o filme chega ao fim, completando um ciclo de tragédias mentirosamente anunciadas — até que então se tornam reais — o espectador não consegue se livrar da carga meio mística que o roteiro tão intensamente constrói ao longo da obra. O texto vem do romance originalmente intitulado Dentre os Mortos (1954), escrito pela dupla Boileau-Narcejac, de quem o Mestre do Suspense já tinha tentado adaptar outro livro, mas foi precedido na negociação dos diretos pelo diretor Henri-Georges Clouzot, que da referida obra fez As Diabólicas. Cientes do imbróglio, os escritores conceberam uma outra narrativa, agora pensando diretamente em Alfred Hitchcock, que desta história faria Vertigo, um dos filmes mais marcantes de sua carreira, reavaliado e amado com o tempo, mas rejeitado nos Estados Unidos quando lançado.

Numa desnecessária, mas situacional comparação com o livro, posso dizer que o filme mantém com muita originalidade a essência do enredo, modificando alguns nomes e situações sem alterar a alma que habita todos esses momentos. E o curioso é que o livro também sofre uma considerável queda na segunda parte, assim como esta sua versão cinematográfica, mas aqui os tropeços são de outra ordem e falaremos a respeito disso mais adiante. Num primeiro momento, gostaria de estabelecer que concordo com uma das leituras mais recorrentes sobre o filme (não por acaso: porque é a mais óbvia), que aponta para uma representação do duplo, mas esse aspecto, a meu ver, se alia mais à ideia de simulacro, com a imitação de uma persona em outra numa teia de eventos que constantemente explora esses personagens como folhas levadas por um vento macabro e onírico (há inclusive uma excelente sequência na obra que destaca isso), perdidos no meio de um espaço geográfico que é uma força em si mesma, um moldador de reações. Concordo com Éric Rohmer quando classifica a obra como um “filme arquitetônico“, juntamente com Janela IndiscretaO Homem Que Sabia Demais.

O ponto de partida para o drama é uma investigação simples, quase ridícula em sua concepção (o marido preocupado com a mulher que apresenta comportamentos estranhos, supostamente manifestando a encarnação de uma ancestral), trazendo a criação de um padrão comportamental que foca em John ‘Scottie’ Ferguson (James Stewart) e Madeleine Elster (Kim Novak, que na segunda parte da fita também interpreta Judy). Ele com um problema de vertigem, manifestação de sua acrofobia; e ela fingindo ser alguém perdida e perturbada por memórias de outra vida, quando na verdade atuava como uma verdadeira femme fatale, representação que se altera quando a farsa chega ao fim e Judy entra em cena, atuando como uma dama em perigo que precisava se esquecer e fugir do que fez no passado. Eis aí todo o conjunto que marca a obra como um filme noir incomum, com pitadas de contos de fada e existencialismo.

O plot criminoso se desenvolve às escondidas do público, numa farsa pseudo-sobrenatural onde nem mesmo o ceticismo do aposentado detetive é o bastante para afastar as suspeitas. E Hitchcock faz de tudo para fortalecer essa impressão, tirando da obra um realismo aparente e focando em um parâmetro claramente onírico, que se mostra para o espectador de diferentes formas visuais, desde os filtros e pontualíssimo trabalho de cores-de-identidade para cada cenário, realizado por Robert Burks, até o primeiro uso famoso do dolly zoom (como sempre, há polêmicas em torno de sua criação e estreia no cinema) para representar a vertigem de John. A intenção maior aqui é fazer com que o público sinta o afogamento simbólico do detetive nessa ideia de “outra vida“, com suas peregrinações majoritariamente silenciosas, acompanhadas pela trilha sombria de Bernard Herrmann, para depois fazer o público sentir o efeito contrário, a retomada de fôlego, o encontro com a sombria realidade e a transformação de alinhamento moral/comportamental dos protagonistas.

O jogo psicológico na seara da representação faz de Um Corpo que Cai um dos mais bem formulados filmes sobre a dinâmica de causa-e-consequência, trazendo do livro no qual se baseia indivíduos que, ao longo de toda a história, “vivem um pesadelo” e dele parecem não acordar. Na obra de Hitchcock, a preparação para essa constatação é feita com calma e com uma variedade de contrapontos e pistas, enquanto a segunda parte parece querer se livrar rápido demais dos problemas intermediários e enfim confrontar o personagem de James Stewart com a verdade, num ponto em que ele não era mais o mocinho da história, mas um manipulador, um neurótico e codependente de um amor perdido que ele se recusava deixar morrer (a ironia do contexto é um deleite!). Como disse antes, o filme sofre dos mesmos males de tratamento que observamos na segunda parte do livro, balançando-se entre a pressa para resolver dilemas importantes e uma grande atenção dada para amenidades que seriam melhor se fossem abreviadas, até porque são a versão, em outro extremo, daquilo que vimos na primeira parte.

O medo, as maquinações e as constantemente frustradas ambições envenenam todos os relacionamentos aqui, inclusive aquele que parece mais sólido e carinhoso, entre John e Midge (Barbara Bel Geddes). Nessa realidade cheia de cores marcantes, figurinos sóbrios e distinção social dos indivíduos, há um mal sendo arquitetado nas sombras, um mal que afeta a todos de formas diferentes, que permite o sucesso do crime e que escolhe os menos diabólicos como algozes e vítimas, cada um vivendo um papel por um determinado período. A vertiginosa exaltação da dor, do sentimento e do fingimento.

Um Corpo que Cai (Vertigo) – EUA, 1958
Direção: Alfred Hitchcock
Roteiro: Alec Coppel, Samuel A. Taylor (baseado na obra de Boileau-Narcejac, com contribuição de Maxwell Anderson)
Elenco: James Stewart, Kim Novak, Barbara Bel Geddes, Tom Helmore, Henry Jones, Raymond Bailey, Ellen Corby, Konstantin Shayne, Lee Patrick
Duração: 128 min.

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