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Crítica | Niaye

por Luiz Santiago
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Lançado um ano depois de O Carroceiro e um ano antes de A Negra De…Niaye (1964) não é um filme fácil de se ver. O drama nos traz uma situação que infelizmente ainda é bastante real em nossos dias, e também infelizmente não é um problema específico da sociedade senegalesa, mesmo nesse recorte que o diretor e roteirista Ousmane Sembene dá ao seu enredo, filmado em 16mm e tendo a participação dos habitantes da vila de Keur Haly Sarrata.

Logo nos primeiros minutos, assim que chegamos à vila, o narrador deixa claro o que está acontecendo com a mãe cabisbaixa, a nobre mulher da vila que precisa se esconder porque a filha está esperando um bastardo. Só que a velha nobre sabe exatamente quem é o pai. Ao falar sobre o filme em entrevista, no ano de 1966, Sembene não apenas resumiu, como expôs a sua inspiração para a obra. Disse ele: “Testemunhei um drama que ocorreu em uma vila senegalesa, um caso de incesto. Niaye, portanto, traça as reações de uma comunidade africana diante de um caso de incesto que perturba suas estruturas. Eu queria, ao fazer Niaye, ir além desse ato abominável e colocar o problema da sociedade africana que, gostemos ou não, está desmoronando“.

Tal qual fizera em O Carroceiro, o diretor utiliza aqui um foco narrativo tradicional, agora abertamente entregue ao griô (griot), fortalecendo formalmente o tipo de “cinema verdadeiramente africano” que se propunha realizar. O griô é aquele que, em algumas culturas africanas, tem a responsabilidade de registrar e passar adiante as histórias, os conhecimentos, as canções e os mitos de uma determinada aldeia. É o guardião, a “biblioteca” da memória local e, portanto, de uma identidade cultural que deve ser passada para as próximas gerações ou utilizadas como lembrança pela geração presente, seja por conversas, consultas ou entretenimento provido pelo griô. E esse personagem é quem assume a narrativa aqui, entrando em um sério conflito consigo mesmo, perguntando-se o que acontece quando a moralidade de uma aldeia é ferida pelos atos de seu chefe.

É pela insatisfação e observações do griô que o espectador vê os acontecimentos aqui, que pouco a pouco ganham ar de grande tragédia. O primeiro elemento que o cineasta discute é a injustiça e o aviltamento da moral local. Nós e o contador da história (que dá ao filme um ar de crônica) ficamos insatisfeitos com o fato de os chefes locais não tomarem nenhuma medida de punição, mesmo sabendo que o nobre da vila é um incestuoso. Dessa discussão é que surge a injustiça cometida contra as mulheres, após o crime acontecer. A filha estuprada é rejeitada, a mãe da jovem é mal vista pelos habitantes e peso moral tão destacado pelo griô tem nela a sua maior expressão, que para escapar da vergonha e rejeição que sofria, decide se matar.

No texto, Sembene faz um recorte que talvez pudéssemos chamar de “crítica ao patriarcado”, descortinando também a forma como essa estrutura ajuda a perpetuar, por interesses próprios, lideranças questionáveis e segregação moral (claramente hipócrita), além de fazer um papel que a direção exibe de modo extremamente irônico, quando o novo líder cede às pressões do colonizador, no caso, o militar cobrador de impostos. Niaye é uma crônica sobre mudanças políticas e sociais que acontecem numa pequena vila, num curto espaço de tempo. De um soldado que volta da guerra enlouquecido ao conflito entre decisões tradicionais e mudanças promovidas pelos “novos tempos“, o diretor consegue lançar um olhar de esperança para os mais novos. Para os enjeitados que não tiveram o que se chamaria de ‘bom nascimento’, mas que talvez possam ser melhores — e mais felizes — do que foram os seus pais.

Niaye — Senegal, França, 1964
Direção: Ousmane Sembene
Roteiro: Ousmane Sembene
Elenco: Sow, Astou Ndiaye, Mame Dia, Modo Séne
Duração: 35 min.

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