Após a Segunda Grande Guerra, uma das perguntas mais urgentes que se colocaram diante de filósofos, historiadores e sociólogos foi a de como se tornara possível atingir tamanho horror em pleno espocar da ciência e do progresso humano. Como o Holocausto se materializou no extermínio de no mínimo 6 milhões de judeus? Como todos os cidadãos implicados direta ou indiretamente naquela barbárie nada fizeram? Como tantos homens, dentre eles artistas, intelectuais, cientistas e médicos, puderam apoiar um horror tão óbvio e explícito? As respostas vieram de várias fontes e à luz de pensamentos diversos. Theodor Adorno elaborou algo como uma “psicanálise” da personalidade autoritária, ao passo que Hannah Arendt trouxe à baila o conceito da banalidade do mal. No cinema, possivelmente a resposta mais original e ousada foi dada pelo documentário Arquitetura da Destruição, dirigido em 1989 pelo sueco Peter Cohen.
O que torna a obra de Cohen tão interessante e tão comentada até hoje é a mudança de lentes para analisar um dos períodos mais tenebrosos da história humana. O documentário recusa a bobagem largamente propagada na segunda metade de século XX de que Hitler era um gênio da retórica e um grande estrategista político. Também não se vale de acusações levianas e pouco elucidativas do processo de nazificação da Alemanha, a exemplo de que Hitler não passava de um artista medíocre e de um homem sem maiores talentos, que a história tratou meramente de colocar no momento e no lugar certos para erguer o Terceiro Reich. Nem o gênio, nem o patife. Do mesmo modo, a conjuntura política de crise econômica (gerada pelo crash de 1929), revanchismo histórico e naturalização da brutalidade não parece dar sustentáculo suficiente para o Holocausto e seus métodos industriais de eliminação de pessoas. Assistir a Arquitetura da Destruição é, assim, uma rara oportunidade de preencher uma importante lacuna nessa história.
Essa lacuna reside surpreendentemente na arte. O diretor sueco elabora um documentário-tese. Riquíssimo em imagens, fotos, excertos de filmagens, documentos e relatórios. A obra defende a tese de que o nazismo só prevaleceu diante de outras vertentes políticas e reuniu as massas de forma tão avassaladora porque penetrou com extrema ferocidade na própria concepção estética de mundo. Somente essa ideia já é bastante interessante, mas a forma como o roteiro (com narração de Bruno Ganz) e a montagem elaboram sua defesa é magistral, costurando fortemente todos os elementos da argumentação para lhe dar arrimo. O documentário se inicia falando da infame primeira exposição de arte degenerada no início do Terceiro Reich, em que as vanguardas artísticas (como o dadaísmo, o expressionismo, etc) eram tratadas pelo nazismo como expressão aberrante da vida moderna. Na via contrária, o heroísmo germânico presente na ópera de Wagner e o ideal de beleza da arte greco-romana, que enaltecia a perfeição das formas humanas, serviam de modelo artístico a ser buscado na Alemanha dominada pelo Führer.
É perfeito que Cohen escolha esse evento artístico na Alemanha como o embrião de todos os demais elementos da tese, pois tudo o que veio a seguir, como o higienismo racial e a perversão médico-científica que a ele serviu, foi produto de uma concepção antes de mais nada estética. Esse é o grande horror que Arquitetura da Destruição demonstra de forma praticamente irrefutável ao longo duas horas de projeção. A arte, uma forma tão digna de mergulhar na compreensão do homem e da existência, pode funcionar igualmente bem como uma matriz do mal e isso não deixa de nos causar espanto ainda hoje. A própria Solução Final para o caso dos judeus, à luz da tese de Cohen, não parece possível sem uma concepção estética que a norteie. Os primeiros métodos de eliminação de judeus consistiam em asfixiá-los com monóxido de carbono dentro de carros nas ruas. Mas como expor a morte e a degradação em plena luz do dia para uma sociedade que mira na beleza e na purgação dos homens e do próprio espaço urbano? Os campos de extermínio de Auschwitz, Treblinka e Sobibor, afastados das grandes cidades, não apenas matavam. Estavam a serviço de um ideal estético muito específico – matavam pelo belo.
Outra exposição de arte degenerada na Alemanha hitlerista, que correlacionava os judeus às figuras retratadas nas telas, supostamente homens e mulheres malformados, adoecidos e infectados, fazia uma indagação cruel: “É isto vida?”. A pergunta retórica deixa claro que cabia ao escrutínio da beleza a decisão sobre o que era vida e o que não era, o que era puro e o que estava inexorável e esteticamente conspurcado. Portanto, à beleza era entregue o direito de decidir quem vive e quem morre. Arquitetura da Destruição demonstra que qualquer tentativa de eliminar a dimensão imperfeita, inacabada e diversa da vida, em vistas de uma beleza suprema e única, não produz nada além de feiura, barbárie e caos. Não é difícil compreender porque a música de Wagner chegou a ser usada enquanto pessoas eram mortas com Zyklon B nas câmaras de gás. O documentário-tese de Peter Cohen permite afirmar, com sua argumentação sólida, que não se tratava apenas de capricho ou crueldade, mas sim de tornar a destruição uma obra de arte. A barbárie estetizada.
É forte e ousada a afirmação final da obra de que o nazismo não era essencialmente um movimento político, que os seus integrantes não visavam exterminar seus opositores, mas sim a contaminação estética que enxergavam nessas pessoas. Mas assistindo a Arquitetura da Destruição, não é possível de fato concluir outra coisa. É duro para todos nós aceitarmos a tese de Peter Cohen por todos os riscos que ela implica ao fazer histórico presente e futuro. Mas se o espírito nazista é mesmo basicamente esteta, só nos resta a eterna vigilância de qualquer forma de arte que, a pretexto de nos sublimar, apenas nos mergulhe em uma malignidade sem precedentes.
Arquitetura da Destruição (Undergängens Arkitektur – Alemanha, 1989)
Direção: Peter Cohen
Roteiro: Peter Cohen
Narração: Bruno Ganz
Duração: 119 minutos.