Milagre Na Cela 7 tornou-se durante a quarentena, quando a Netflix passou a ser um dos maiores refúgios do grande público para atravessar o período de isolamento, um dos maiores sucessos da plataforma. É impossível assistir a essa história e não se lembrar imediatamente de outros dois títulos – À Espera de Um Milagre, de 2000, e Uma Lição de Amor, de 2002, uma vez que os temas envolvidos são também uma prisão e uma condenação à morte injustas e a relação entre um pai com retardo mental e sua filha. Uma coisa não é possível negar – a emoção que o longa-metragem de Mehmet Ada Öztekin tem provocado nos espectadores da plataforma tem sido equivalente àquela causada pelos outros dois. O filme turco, entretanto, é bastante irregular enquanto obra cinematográfica, ainda que ele consiga sim emocionar tremendamente o público com uma história comovente.
A grande questão é como o filme tira proveito da ótima história que visa contar. A atuação de Aras Bulut Iynemli, vivendo o protagonista Memo, me parece acertada em praticamente todos os momentos. O mesmo eu diria da atuação mirim de Nisa Sofiya Aksongur, dando vida à sua filha Ova. Não vejo excesso de maneirismos nem caricatura na construção dos personagens principais. Mas o roteiro, por vezes, realiza saltos pouco verossímeis para alguém com a condição mental de Memo e, principalmente, para alguém que se demonstrava tão inocente e tão incapaz de compreender com exatidão o mundo que o cerca. A cena em que lhe é dito que seria executado, com uso de uma forca, evidencia bem isso. Ele compreende de forma imediata a gravidade de sua situação, algo que não parece muito coerente com suas atitudes praticamente alienadas minutos antes na projeção. O roteiro vacila aqui e ali, sem promover maiores desenvolvimentos para o protagonista, ainda que assuma a necessidade de fazê-lo para a evolução geral da obra.
Além da ótima atuação do ator e da atriz principais, a trilha sonora de Hasan Özsüt é outro ponto forte do filme. A mixagem de som se vale do tema principal sempre em alto volume para dar ênfase aos diversos clímax da obra, incluindo o clímax final, quando se dá o plot twist do longa-metragem. A direção de Mehmet Ada Öztekin e a montagem de Ruşen Dağhan tem seus bons momentos, mas penso que falta maior sutileza em muitos outros. A recorrência e a duração da câmera lenta em praticamente todos os momentos dramáticos acaba perdendo vigor na medida em que o recurso insiste. Se o objetivo de um artifício como esse é criar relevo, as cenas em que aparece precisam ser escolhidas a dedo, caso contrário ele se torna manipulador, artificialista e até cabotino. A montagem do filme, por sua vez, traz algumas boas ideias, por exemplo ao utilizar um match cut gráfico para mostrar a árvore onde outro prisioneiro – Yusuf Aga – enterrara sua filha. A falta de capricho na execução do corte, entretanto, desperdiça uma excelente oportunidade de fazer poesia por meio de um recurso que é essencialmente poético. O já mencionado plot twist final é bom. Surpreende e captura o olhar do público, mas não faz nada que filmes como À Espera de um Milagre já não tivessem entregado antes e com muito maior inventividade.
Apesar dos numerosos problemas estruturais e narrativos, Milagre na Cela 7 consegue sim mexer com algo dentro do espectador, ainda que pudesse ter alcançado um resultado bem melhor. Uma história tão pujante, que envolve inclusive a importante camada política de esmagamento de um indivíduo por um governo autoritário, não deixa de ser tocante e significativa, ainda que facilitada por um tom quase folhetinesco (o que não é necessariamente um defeito). Concluo que, se o conjunto de uma obra consegue sobreviver aos seus tropeços, ela merece pelo menos algum lugar ao sol. Esse conceito me parece caber como uma luva nesse filme turco, que seguirá emocionando os espectadores da Netflix por um bom tempo e com alguns méritos.
Milagre na Cela 7 (7. Kogustaki Mucize – Turquia, 2019)
Direção: Mehmet Ada Öztekin
Roteiro: Kubilay Tat, Özge Efendioglu
Elenco: Aras Bulut İynemli, Nisa Sofiya Aksongur, Cankat Aydos, Celile Toyon Uysal, Deniz Baysal, Deniz Celiloglu, Ferit Kaya, Gulcin Kultur Sahin
Duração: 132 minutos