Logo em sua primeira cena, o filme Sérgio, a partir de uma falsa auto-consciência, tenta se eximir de uma culpa que ele carregará ao longo de sua exibição. Diante da câmera, o embaixador Sérgio Vieira de Mello (Wagner Moura) está preparando uma mensagem de boas vindas os novos membros da ONU. Uma repórter pergunta: “Como se tornou alto-comissário para os Direitos Humanos?” Já o brasileiro, responde: “Nossa! Sabe que não consigo resumir trinta e quatro anos em três minutos”. Obviamente, adaptar a vida de figuras históricas em 118 minutos é sempre um desafio, mas isso não é um passe livre para que o roteirista Craig Borten lave suas mãos do desastre que ele mesmo irá cometer. Afinal, o problema do longa não são os momentos históricos na vida de Sérgio que ele deixou de mostrar, mas justamente aquilo que ele optou por dar foco.
Eu gosto de pensar que em todo filme existe uma sequência-chave que seja o resumo de todo o seu tom. Aqui, isso acontece quando Sérgio e sua futura esposa, Carolina (Ana de Armas), estão passeando no meio de uma vila do Timor Leste. Primeiramente, temos o tocante monólogo de uma moradora local para o embaixador, na qual, ao ser perguntada sobre o que ela quer, afirma que quer subir ao céu, virar uma nuvem, e cair em forma de chuva, ficando para sempre na terra. Na sequência seguinte, uma chuva cai e Sérgio afirma que naquele lugar sempre chove no mesmo horário, dando seu primeiro beijo em Carolina, no meio do temporal, filmado em close-up e com uma trilha melancólica.
Ora, descrito os acontecimentos, vemos que a sequência começa com um realismo quase documental (uso de língua nativa, atriz amadora, a tentativa de compreender a cultura distante) rapidamente se transforma no beijo na chuva quase que de um clássico hollywoodiano, cercado de liberdade poética. No caso, é ainda mais grave, se fizermos um paralelismo entre as cenas: para a nativa, que já perdera toda a família para a guerra, virar um entidade da natureza reforça uma tradição local baseada em mitos e uma forte religiosidade no pós-vida. É revelador que tal significado simbólico e profundo da chuva previamente apresentado seja banalizado como pano de fundo para um beijo purificador do protagonista estrangeiro, o que resume toda o filme: uma tentativa de subordinar seu caráter biográfico a um drama apelativo para para a audiência.
Até mesmo o diretor Greg Barker, que anteriormente só havia trabalhado em documentários para a televisão (inclusive, um sobre o próprio Sérgio, 10 anos antes, que pode ser conferido na Netflix), chega a flertar inicialmente com o uso de imagens de arquivo, mas logo as abandona, sem nenhum motivo. Assim, Barker passa a escolher sequências de planos médios ou close-ups no rosto de Moura, normalmente desfocando o fundo. Bem, inegável que o filme é sobre a figura de Sérgio Vieira de Mello e não um passeio turístico pelo mundo, mas a escolha dos planos vão revelando que se trata de uma visão unicamente preocupada em abordar o objeto da cinebiografia, mas esquecendo que, para um embaixador da ONU, é justamente sua relação com o ambiente e o povo que lhe definem. No único momento que Barker filma o Iraque e seu povo, são em planos subjetivos de Sérgio dentro de um carro, o que reforça essa visão afastada.
Progressivamente, Sérgio vai cada vez mais se afastando de seu tom biográfico (que já era falho) e vai virando um drama intimista focado na relação entre Moura e De Armas. Por um lado, entendo a tentativa de desconstruir uma figura mítica, colocando-lhe em um lugar comum e de fragilidade, expondo seus pequenos dramas. Contudo, isso não pode significar uma mudança abrupta no foco, a ponto de fazer entender que a figura de Sérgio se resume ao seu relacionamento. O auge desta contradição e cafonice é exatamente na sequência final, quando temos a voz em off de Sérgio narrando que trabalhar nas Nações Unidas significa ajudar aqueles que precisam e sofrem, enquanto a imagem mostra uma sequência “poética” de Carolina boiando no mar. Ou seja, é esse o seu legado?
De mesmo modo, outra decisão narrativa questionável do filme é sua não-linearidade, funcionando como uma espécie de retrospectiva a partir dos últimos devaneios do protagonista, com a aproximação de sua morte. Reconheço que, a partir disso, é possível argumentar em favor do foco nos dramas intimistas, mostrando que, em seus momentos finais, o que importava para ele era, na verdade, sua vida fora do emprego. Similarmente, a já mencionada cena do beijo na chuva também se justificaria, como uma própria lembrança romantizada do quase-falecido de um acontecimento marcante em sua vida. Porém, penso que nada disso seja forte o suficiente para anular o ponto de que a maior preocupação de Barker, ao trazer o atentado terrorista para o primeiro ato, é um artifício barato para prender a atenção do espectador logo de imediato e segurá-lo até o fim. Não só isso, mas tal escolha de começar pelo final atribui um senso de fatalismo e culpa de Sérgio em relação a sua própria morte, como se suas decisões o tivessem levado até ali, algo que nunca é aprofundado no roteiro.
Aliás, para um obra sobre um brasileiro que tem a pretensão de recorrer a todas as apelações possíveis para ser exportada ao público americano, a própria escalação de Wagner Moura (e Ana de Armas) reforça este aspecto, uma vez que é um dos nomes latinos mais conhecido do outro lado do continente. Basta ver um vídeo do verdadeiro diplomata Sérgio de Mello para escutar seu inglês de um lord britânico, enquanto Moura jamais tenta esconder seu sotaque marcado por um forte “carioquês”, assim como ainda há cacoetes de um Capitão Nascimento nos momentos de explosão do embaixador. No fim, é este tipo de coisa que vende a imagem do Brasil lá fora. Não é o suficiente para Sérgio Vieira de Mello.
Sérgio (Sergio) – Estados Unidos, 2020
Direção: Greg Barker
Roteiro: Craig Borten (baseado no livro de Samantha Power)
Elenco: Wagner Moura, Ana de Armas, Garret Dillahunt, Will Dalton, Bradley Whitford, Brían F. O’Byrne, Clemens Schick
Duração: 118 min.