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Crítica | Crash – Estranhos Prazeres

por Leonardo Campos
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Mais uma vez a humanidade e as máquinas. No entanto, mudança de rumo no desenvolvimento narrativo, desfocado na ideia de um protagonista único, mas no drama, na estranheza, nos desejos em fruição, oriundos não apenas de um, mas de uma quantidade maior de personagens, aliás, figuras que para funcionar diante de seus conflitos e necessidades dramáticas, precisam do “outro” para a reafirmação de seus interesses. Antes de adentrar na análise ética e estética do despudorado e complexo Crash – Estranhos Prazeres, compartilho com os leitores a experiência longa com o clássico moderno de David Cronenberg, presença constante em minha trajetória profissional e cinéfila. Lançado em 1996, o filme sempre era retomado quando clientes da videolocadora onde trabalhei por anos, outra forte base de minha jornada na crítica cinematográfica, procuravam por Crash. Mas não era o Crash de Cronenberg. Era o premiado filme sobre multiculturalismo, identidade e geopolítica contemporânea, dirigido por Paul Haggis.

As solicitações sempre vinham acompanhadas de comentários extras, quando oriundo de pessoas com algum conhecimento cinematográfico, a reforçar que não era “aquele filme maluco de sexo e trânsito”. Outros, mais despojados, eram autênticos e deixavam claro que “não queriam o filme sem sentido sobre um homem que faz sexo no carro”. A lista de comentários é enorme e fazia parte das piadas internas entre nós, indicadores, profissionais que ficavam de prontidão no empreendimento para atender aos clientes dentro de determinados perfis. Tinham os nerds, os fãs de terror, as psicólogas e psicanalistas em busca de Vampiros de Almas, os vestibulandos desesperados por traduções intersemióticas de obras literárias para não ler os seus respectivos livros, ou então, interessados em documentários sobre fatos históricos e geográficos do campo das Ciências Humanas. Dentre tantos tipos humanos em busca de filmes, alguns deles, interessavam-se pela exploração do corpo face ao desenvolvimento tecnológico, apresentado nos filmes de Cronenberg nos conflitos internos e externos de seus personagens.

O outro ponto de conexão com Crash – Estranhos Prazeres é relativamente mais recente, fruto da experiência de observação do ponto de vista das abordagens interpretativas filosóficas propostas pela narrativa. O polêmico drama sobre pulsão de morte e desejos sexuais aflorados teve o meu testemunho na plateia, parte de quem assistiu algumas apresentações do filme mediado por estudos no campo da Comunicação Social. Dirigido e escrito por David Cronenberg, tendo como base, o livro homônimo de J. B. Ballard, a obra em questão flerta com Bauman e seu elucidativo O Mal-Estar da Pós-Modernidade, ao tratar de um momento em que a realidade se tornou tão “absurda” que precisamos utilizar a “suspensão da descrença”, um artefato das artes dramáticas e literárias, para encarar os desdobramentos do cotidiano. O mesmo trabalho pontuou que algumas relações do filme se conectam com as considerações de Guy Debord em A Sociedade do Espetáculo, compêndio que em meu ponto de vista, hoje precisa ser reinterpretado.

O excerto, por sua vez, anotado até recentemente num diário de bordo das atividades deste período aponta que na cultura das massas, o público alienado consome, mas não compreende a sua própria existência e aquilo que deseja. Será? Há algumas possibilidades nesta exposição que precisam ser refletidas e debatidas com maior ênfase, mas há alguma verdade na colocação. De fato, os personagens em Crash – Estranhos Prazeres entendem o que querem ou preferem se entregar aos desejos desenfreados, tópico já trabalhado pelo cineasta em outros filmes igualmente polêmicos e complexos? De toda filmografia de David Cronenberg, assumo que esta é a produção que talvez mais tenha um aspecto conceitual, quase hermética dentro de suas propostas alegóricas que podem não conseguir processamento imediato do espectador mais despreparado, e busca do entretenimento ou até mesmo de uma reflexão “maneira” do diretor de A Mosca, Calafrios, Marcas da Violência, dentre outras obras icônicas.

Para fechar a extensa digressão delineada por esta abertura, algo necessário quando partimos do fato de ser a crítica uma relação do filme com quem o analisa, situação que leva em conta o seu contexto histórico, mais complexo quando analisado diacronicamente, isto é, mais de vinte anos após o lançamento da produção e com um lastro de relações da narrativa com o espectador que se transforma em narrador. Revistar Crash – Estranhos Prazeres é flertar com as considerações de Simulacros e Simulações, de Jean Baudrillard, outra publicação que encontra ecos na tradução intersemiótica de Cronenberg para o romance de Ballard, publicado em 1973, uma obra que parece ter sido ironia do destino, criada para ser transformada em filme pelo cineasta canadense de olhar bastante peculiar para as relações humanas.  Em sua filosofia radical, Baudrillard expõe que a tecnologia é um prolongamento de um organismo humano, algo já discutido em correntes homônimas e convergentes. Isso já sabíamos, não é mesmo?

Expus algo nos textos anteriores sobre outras interpretações do universo fílmico em questão, no entanto, o autor alega que no mundo moderno, vivemos numa sociedade onde os símbolos se tornaram mais forte que as coisas reais que lhe servem para representação. É como se a projeção, neste caso, o simulacro, fosse mais intenso que o próprio objeto em si. Não é mais o que ele é, mas o que ele representa. Neste caso, o automóvel, tecnologia marco da Publicidade e Propaganda do século XX e XXI, surge na mídia como uma verdadeira força da natureza. E, quem o guia é dotado de poder, também simbólico, justificativa para os acidentes de trânsito ocuparem um espaço de “prestígio” no ranking das principais causas de morte em todo o planeta. Em Crash – Estranhos Prazeres, tal como Videodrome – A Síndrome do Vídeo, os desejos ultrapassam a zona do socialmente permitido, ganham uma aura de fetiche bizarro, com personagem em busca de experiências extremas.

Interessante como os créditos iniciais cumprem a sua função climática preambular. Nos apresenta as letras que se chocam, como as colisões que seremos testemunha logo mais. Para quem conhece o livro, percebe que há a troca de espaço físico. Saímos de Londres para Toronto. O clima da produção é uma mixagem de atmosfera onírica com o clima urbano dos anos 1990, uma era de avanços industrias e tecnológicos que mudava as metrópoles cada vez mais digitalizadas, num momento prévio ao boom da virtualidade das gerações seguintes. Acompanhamos James (James Spader), um profissional da publicidade que sofre um grave acidente de carro por causa de sua postura inquieta e irresponsável. No ato da batida, ele conferia um storyboard de um trabalho, motivo para a perda do controle e inevitável acidente. Deste momento em diante, tudo muda na vida do personagem. Um dos fatos é a relação com a esposa, Katherine (Deborah Unger), parceira que mergulhará no mesmo mundo de desejos sexuais e acidentes automobilísticos. Esse é o fetiche de Crash – Estranhos Prazeres.

Sempre criticamos os títulos nacionais, mas até que dessa vez a produtora não tomou um rumo muito vulgarizado. Há alguns traços que permitem essa interpretação, haja vista a nossa permanência numa sociedade que ainda encara o sexo como tabu. E não digo as chamadas perversões sexuais que o espectador pode encontrar no filme, mas questões mais simples, num mundo onde vocábulos como penetração, gozo, prazer, dentre outros, são encarados com constrangimento ou até mesmo piadas não apenas de adolescentes, mas de adultos. Isso em muitas situações em que são empregados sem qualquer interpretação sexual. Imagina um filme sobre pessoas que alcançam o ápice do prazer sexual com batidas automobilísticas, em pleno anos 1990? É a exasperação do sexo para além dos limites aceitáveis numa sociedade retilínea, despreparada para as curvas que surgem constantemente na travessia de seus transeuntes.

Inicialmente inquieto pela imobilidade externa de seu corpo, engessado pela parafernália médica que busca o ajuste dos estragos causados pelo acidente, o organismo de James fervilha internamente. Algo mudou em sua jornada e o que ele que é ir além das experiências básicas de sua vida sexual, algo que passa também por questões sociais de reafirmação de identidade e busca por desafiar a ordem das coisas que em certo momento, o cristalizou momentaneamente, impedindo-lhe o exercício de seus desejos mais intensos. Em certo ponto, James conhece Helen (Holly Hunter), a esposa do homem que morreu no acidente, o “outro” que não resistiu ao processo, figura que possui uma curiosa investigação científica sobre a fusão entre fluídos humanos e industriais, tendo em vista alcançar os resultados de sua análise não explicitada, mas que permeia o conteúdo do filme de maneira onipresente, onisciente e onipotente. Ele também se encontra com Vaughan (Elias Koteas), homem por detrás de um projeto, seita, culto ou sei lá como possamos chamar, voltado ao atendimento de pessoas que reencenam cenas marcantes de acidentes automobilísticos em busca do prazer sexual.

É o se expor e estar diante do risco que estimula a chegada do clímax mais intenso, mesmo que perigoso. Carro e sexo, acidente e gozo, morte e prazer, dentre outras dualidades típicas do pensamento ocidental, fazem parte do desenvolvimento deste filme que é mais imagem e menos textos. A verborragia deixa espaço para a ação e os personagens estão todos mergulhados numa atmosfera que não deixa espaço para qualquer conceito envolto nas padronizações da “normalidade”. A exibição de seres humanos incapazes de conseguir assumir o devido controle de suas vidas não é uma prerrogativa de Crash – Estranhos Prazeres, caso o olhar esteja voltado para a filmografia de David Cronenberg. No sexo, os parceiros não se olham muito. Será sonho ou realidade algumas passagens? O carro, parte importante da cenografia gerenciada pelo design de produção de Carol Spier, isola os personagens, deixando-os aconchegados na presença pulsante do prazer e da morte. O sexo parece ser uma missão a ser cumprida, em prol da nova ordem estabelecida na vida das figuras que circulam ansiosamente pelo filme, um tratado sobre comunicabilidade, outro tema tangencial do cinema cronenberguiano.

Em certo momento, uma cicatriz é tocada como se a pessoa estivesse diante de um órgão apto para o ato sexual. E não para por aí, pois os pinos, marchas, próteses, incisões e qualquer outro objeto que tenha uma possibilidade de interpretação sexual ganha no filme projeções inimagináveis ou tratadas de maneira inadequada por um cineasta menos experiente diante da complexidade do processo. O sêmen e o óleo estão lado a lado, são partes integrantes de um sistema de engrenagem deste filme que transforma o trânsito e o fluxo dos carros como uma dança erótica, tendo a estrada como espaço para o fluxo das pessoas envolvidas nesta viagem transcendente, guiada pela condução musical de Howard Shore, metálico nos momentos de maior complexidade e adepto das cordas quando a trama trafega por momentos de intimidade entre humanos. A rodovia, sob a direção de fotografia eficiente de Peter Suschitzky, tanto nos planos gerais quanto no ponto de vista, adquire a ideia de ser ilimitada, espaço para a entrega e a perda dos limites, alegórica e física aqui, haja vista o acidente que aniquila uma vida e transforma os demais envolvidos para o resto de suas existências. E o melhor: tudo isso é apresentado sem pudor, sem desculpas ou notas explicativas. É um cinema cru, para os fortes. Preparado?

Crash – Estranhos Prazeres (Crash) — Canadá, 1996
Direção: David Cronenberg
Roteiro: David Cronenberg
Elenco: Deborah Unger, Elias Koteas, Holly Hunter, James Spader, Peter MacNeill, Rosanna Arquette, Yolande Julian
Duração: 100 min.

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