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Crítica | A Odisseia de Penélope, de Margaret Atwood

por Ritter Fan
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Mas a manhã nos acorda.
Novamente trabalhamos, escravas,
E levantamos as saias se mandam,
A qualquer patife ou safado.

A Canongate Myth Series foi criada em 1999 por iniciativa do editor britânico Jamie Byng com o objetivo de reunir histórias em formato de novelas – ou contos mais alongados – que reformulam lendas e mitos das mais diversas nacionalidades e pelos mais diversos autores. Foram necessários seis anos para os primeiros títulos serem finalmente publicados, mas eles os foram com toda a pompa e circunstância, com três lançamentos simultâneos em 33 países e 28 línguas, um feito que, sozinho, já chama atenção de quem quer que seja. Infelizmente, apesar de o projeto inicialmente ter anunciado que o objeto era chegar a ter mais de 100 títulos, essa meta ainda está longe de ser alcançada, com apenas 18 publicados até 2013, quando a série parou.

Mas isso não tira o mérito do que já foi publicado, com revisões de mitos variados que passam pela mitologia grega, nórdica, eslava e também a cristã, sempre com pegadas originais e inventivas. No pacote inicial de três lançamentos, a editora lançou Breve História do Mito, por Karen Armstrong, que, como o título indica, aborda as origens da mitologia em si, A Odisseia de Penélope, de Margaret Atwood, objeto da presente crítica e Weight, de Jeanette Winterson, que lida com as lendas de Hércules e Atlas.

A canadense Atwood usa de toda sua ironia e sarcasmo para contar nada menos do que a Odisseia, de Homero, mas sob o inusitado ponto de vista da mulher que espera ansiosamente a volta de seu amado marido Odisseu para a ilha de Ítaca após a Guerra de Troia contada na Ilíada. Lembram-se de Penélope, que de dia tecia uma mortalha para, de noite, desfazê-la como estratagema para atrasar seu inevitável casamento com algum pretendente em vista da ausência do marido há anos? Pois bem, é essa mesma Penélope que é a narradora dos acontecimentos, mas não enquanto eles ocorrem, mas sim milênios mais tarde – literalmente hoje em dia – mas do Hades, o inferno da mitologia grega, onde ela agora reside juntamente com seus colegas da época.

Penélope, aqui, não é reinventada. Tudo o que podemos ler na Odisseia está presente de maneira ultra-concisa em A Odisseia de Penélope, mas Atwood usa de toda sua expertise com as palavras para pintar o quadro não de uma rainha que apenas espera desesperada o amor de sua vida retornar, mantendo-se casta, fiel e continuando a agir como se espera de uma mulher, de uma dona de casa da aristocracia grega. Penélope mostra-se muito menos ingênua do que no clássico grego. Aliás, ela não é nada ingênua, ainda que continue sendo a esposa que realmente gosta de seu marido, já que não há nada de errado com isso. No entanto, ela sabe que Odisseu é um grande enganador, um homem que usa a lábia para escapar de todas as situações, seja encarando Polifemo, seja escondendo suas amantes de sua esposa.

Mas não é só Odisseu que é desmistificado, com a conversão do herói por excelência em, essencialmente, um malandro manipulador, já que muito do que Atwood tem a dizer dirige-se, também, a Helena de Troia, a causa da guerra ao se deixar levar por Páris. A futilidade da belíssima mulher – e a inveja que Penélope sente, já que não é tão bonita assim – é colocada às escâncaras tanto nas falas da rainha quando como a vemos em sua forma de espírito em Hades, ainda cercada de homens ávidos por suas feições e, claro, seu corpo. Euricleia, ama de leite não só de Odisseu quanto de Telêmaco, é, porém, a grande nêmese de Penélope, em constante conflito aberto com a rainha, mas mantendo toda a compostura que a relação exige, algo que os pensamento da rainha corroem ao máximo possível, como o ódio clichê entre nora e sogra. O humor é onipresente, mas o humor, nas obras de Atwood, normalmente nos faz sentir culpados de rir, especialmente se, como eu, o leitor for um homem (e digo isso como um elogio, que fique bem claro).

Interessantemente, porém, a novela é tanto de Penélope quanto das 12 escravas que são suas confidentes e ajudantes e que acabam morta ao final do poema épico de Homero por terem sido violadas pelos pretendentes de Penélope, ou seja, sem autorização de seu dono. Aqui, o humor de Atwood ganha contornos absolutamente macabros, pois o estupro – lugar comum na época entre amos e servos e ainda muito presente nos dias de hoje – é tratado como algo banal do cotidiano, com as escravas não só sendo escravas, condição essa terrível por si só, como também tendo que lidar com os avanços da mais de centena de homens jovens e viris que permanecem constantemente na esbórnia no castelo de Odisseu em Ítaca.

Na narrativa, Atwood brihantemente usa as escravas coletivamente – apenas personificando repetidamente uma delas, Melanto, a mais bonita – como o coro grego usado nas tragédias clássicas, ou seja, seja como instrumento de comentário ao que está ocorrendo e aos pensamentos e ideias de Penélope. Mas a autora vai ainda além, criando momentos realmente brilhantes como quando finalmente o leitor ganha confirmação sobre determinada postura de Penélope sobre sua vida privada, desdizendo o que veio antes pelas palavras da rainha ou quando Atwood empresta seu próprio significado esotérico e numerólogo aos assassinatos das escravas, trazendo à lume o Culto à Deusa que foi varrido pelas brumas do tempo e, finalmente, quando somos brindados com o cínico – e por isso mesmo ainda mais revoltante – “julgamento de Odisseu” por uma corte do século XXI, apenas comprovando que nada, absolutamente nada mudou de verdade.

Talvez Margaret Atwood tenha até pisado no freio em sua narrativa do outro lado de lá de uma das mais importantes obras ocidentais, mas o que ela faz em apenas pouco mais de 120 páginas que podem ser lidas facilmente em uma tarde é o suficiente para emprestar uma visão crível daquilo que fica nas entrelinhas da Odisseia e de um sem-número de outras obras clássicas importantes contadas a partir do ponto de vista do “vitorioso” ou, por assim dizer, do lado masculino. Certamente há material suficiente aqui para enfurecer aqueles que não podem sequer ouvir falar da palavra feminismo – mais conhecidos como os “machos inseguros” – e para trazer um sorriso amargo ao rosto daqueles que, como eu, se sentirão incomodados positivamente pelas cutucadas violentas que a canadense nos dá com seu revisionismo literário. A odisseia de Penélope infelizmente está longe de acabar, mas esse pequeno livreto é mais um tiro no alvo certo.

A Odisseia de Penélope (The Penelopiad, Canadá – 2005)
Autora: Margaret Atwood
Editora original: Knopf Canada (Canongate Myth Series)
Data original de publicação: 11 de outubro de 2005
Editora no Brasil: Editora Rocco
Data de publicação no Brasil (edição mais recente): 10 de março de 2020
Tradução (Editora Rocco): Celso Nogueira
Páginas (Editora Rocco): 127

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