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Broken Pieces é um episódio que me deixou na dúvida sobre como analisá-lo. Por um lado, ele desnuda exatamente o que há de muito errado nessa temporada inaugural de Star Trek: Picard, mas, de outro, ele consegue, se visto independentemente, cumprir seu objetivo, que é parar, revelar, recapitular e preparar o espectador para o episódio duplo final Et in Arcadia Ego, que irá ao ar uma parte por semana.
Vamos, então, começar pelo que há de negativo ou, melhor dizendo, o que ele representa de negativo para tudo o que veio antes. Sabem os clássicos livros de Agatha Christie, em que ela desenvolve sua história de maneira a levar Hercule Poirot a colocar todos os suspeitos em uma sala para, então, revelar o assassino? Pois bem, Broken Pieces é exatamente o capítulo que aborda a famosa sala. Mas, com todo respeito, os showrunners da série não lambem as botas da sensacional autora britânica e transformaram quase todos os capítulos anteriores, que deveriam levar organicamente à “cena da sala”, em um festival de nostalgia e saudosismo que foi muito além de trazer Jean-Luc Picard de volta de sua aposentadoria.
Como disse mais assertivamente na crítica de Nepenthe, esse olhar para trás é simpático e bem-vindo, mas somente quando ele mantem-se saudavelmente nas beiradas, jamais interferindo pesadamente na narrativa. No entanto, o que vimos em Star Trek: Picard, até agora, foi um desfile incessante de situações forçadas para que velhos personagens voltassem para as telinhas por alguns momentos de forma a matar a saudade de fãs da velha guarda como eu, por exemplo. Mas a grande verdade é que esse vício acabou tomando conta da temporada, corrompendo a história original que começou muito bem e jogando-a para o banco de reserva.
Portanto, esses “pedaços quebrados” do título não formam um todo que se encaixa natural e facilmente, pois eles perderam espaço para pontas de Sete de Nove, de Deanna Troi, de William Riker, de Hugh e assim por diante sem que muito fosse oferecido em termos de efetivo desenvolvimento. E é por isso que o episódio sob comento revela a nudez do rei ao literalmente fazer a tripulação de Picard sentar ao redor de uma mesa para que, então, o quebra-cabeças pudesse ser montado com textos expositivos atrás de textos expositivos. A diferença para as histórias de Agatha Christie é que, em seus livros, o artifício da reunião reveladora é parte orgânica da narrativa na maioria dos casos e, aqui, ao contrário, a explicação do que aconteceu até aqui parece literalmente “cenas dos capítulos anteriores” ou, pior ainda, um momento que subestima a inteligência do espectador e diz algo como “senta aqui para eu te explicar exatamente o que aconteceu até agora, seu burrinho”.
Dito isso – e aí vem o lado bom da coisa toda -, tenho que confessar que Broken Pieces consegue quebrar o arco descendente que acometeu a temporada desde The Impossible Box. E esse resultado é obtido não só pelo retorno de Sete, como também por intermédio da simpática investigação que Raffi empreende na La Sirena depois que o Capitão Rios reconhece Soji e entra em modo de auto-destruição. Sei o que muitos vão dizer: haja conveniência! E é verdade, pois os dois artifícios narrativos que citei dependem que suspendamos nossa descrença e aceitemos o providencial “botão de pânico” que invoca Sete e a mais completa e absurda coincidência que é Rios já ter se deparado com uma “irmã” da androide.
Mas, se entubarmos esses dois atos roteirísticos divinos, a forma como eles são desenvolvidos sacode o episódio, retirando a série do marasmo nostálgico em que ela se encontrava. No Cubo Borg, por exemplo, é simplesmente um deleite ver Sete reativar a parafernália de seus algozes e criar uma “mini-colméia” para enfrentar Narissa, com direito a excelentes efeitos especiais que vão da regeneração do Cubo até a dolorosa defenestração dos XBs em estase. Na La Sirena, a diversão fica por conta dos hologramas de Rios tentando lembrar de onde o capitão lembra de Soji, sob o comando da “inspetora” Raffi. Santiago Cabrera teve poucos momentos para brilhar na temporada, mas, aqui, multiplicado por seis – e cada um com seu jeito e sotaque – o ator encontra um sensacional palco para realmente soltar-se e entregar excelentes e hilárias performances.
Talvez eu tenha que falar um pouco do prólogo que mostra a cerimônia de criação do Zhat Vash, mas prometo ser breve. Esse pequeno “pedaço de informação” cumpre a função muito mais de estabelecer uma ponte que justifique a existência de Ramdha na temporada do que efetivamente trazer algo que não sabíamos. Tudo bem que é interessante que essa visão não é de futuro, mas sim de um passado remoto, há 200 ou 300 mil anos em que uma raça foi aniquilada por suas próprias criações, mas convenhamos que essa historinha sempre eficiente à la Skynet não precisava de algo muito elaborado para funcionar. O que me deixa particularmente cabreiro é que I.A. destruindo o universo foi o mote da segunda temporada de Star Trek: Discovery e se houver conexão com a série-irmã, ela provavelmente cairá de para-quedas, o que é ruim, e, se não houver, a constatação de que há uma crise de originalidade nas equipes responsáveis por Star Trek lá na CBS é uma tristeza.
Com a temporada caminhando para seu final, fica a torcida para a série realmente mostrar a que veio para além do mero saudosismo nerd. Há possibilidade ainda não de recuperação total, mas de uma demonstração definitiva de que Star Trek: Picard não precisa ficar no passado para mostrar que tem futuro.
Star Trek: Picard – 1X08: Broken Pieces (EUA, 12 de março de 2020)
Desenvolvimento: Kirsten Beyer, Akiva Goldsman, Michael Chabon, Alex Kurtzman (baseado em personagens criados por Gene Roddenberry)
Direção: Maja Vrvilo
Roteiro: Michael Chabon
Elenco: Patrick Stewart, Alison Pill, Evan Evagora, Michelle Hurd, Santiago Cabrera, Harry Treadaway, Isa Briones, Peyton List, Jeri Ryan
Duração: 56 min.