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Crítica | Maria e João: O Conto das Bruxas

por Fernando Annunziata
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As mulheres sabem de coisas que não deveriam.

Não é para menos que uma releitura madura de um conto de fadas atraísse a atenção dos espectadores. Não só isso, como também a ousadia do roteirista Rob Hayes em se apropriar da história e construir uma narrativa com moral inversa: enquanto a história dos Irmãos Grimm moraliza a união familiar e os perigos de conversar com estranhos, a narrativa de Hayes explora a necessidade de conhecer o desconhecido e de superar laços familiares para que seja possível alcançar a evolução. Felizmente um conceito perfeitamente explorado desde a troca do título do filme para Maria e João até a última cena. Sem deixar, é claro, de acompanhar a adulteração da narrativa pela fotografia e pela trilha sonora que, embora fujam dos padrões dos contos de fadas, nunca deixa de relembrar aspectos infantis e utópicos. 

Na releitura de Hayes, Maria (Sophia Lillis) e João (Samuel Leakey) são duas crianças expulsas de casa pela própria mãe após a peste negra assolar a cidade. Perdidos na floresta, os dois se encontram diante de silhuetas misteriosas, ao passo que a fome começa a afetar o psicológico deles. A única esperança está na casa de doces da velha Holda (Alice Krige), uma mulher que está sempre rodeada de alimentos e discursos misteriosos. No entanto, um velho conto de fadas envolvendo uma bruxa de capuz rosa logo se torna realidade, e os protagonistas estão mais perto do conto do que imaginam.

Uma obra com personalidade” é a frase que mais simplifica Maria e João. No roteiro já encontramos características marcantes de Hayes, como a necessidade de explorar temas modernos dentro do possível, a exemplo do feminismo presente na protagonista. Para além disso, o autor apresenta uma visão mais voltada ao pessimismo e a sequências lentas e pesadas, ainda mais com o contexto histórico que a narrativa se passa (os horrores da peste). Com essa personalidade, não faria sentido algum uma releitura fiel à obra de João e Maria; se apropriar do conto e fazê-lo uma obra independente, apenas inspirado no conto original, é o maior acerto de Hayes. Mas isso não se limita apenas à ousadia do roteirista, visto que todas as ações cinematográficas são construídas inteligentemente. Embora transpareça uma vontade de transformar a narrativa em uma história independente, Maria e João a todo momento relembra aspectos fantásticos. A história, por exemplo, é narrada por Maria, como se estivéssemos lendo um livro, além de ter o abre-alas em um conto de fadas que afeta todo o decorrer da história, além, de claro, da presença de bruxas e feitiçarias. Por outro lado, com um “pé a mais no chão”, Hayes traz a narrativa para o mundo real, exemplificada no próprio contexto da peste, mas também em outras pequenas partes, como quando os irmãos comem cogumelos alucinógenos para não morrer de fome. É um conto de fadas para lá de utópico que não perde a realidade que a narrativa precisava passar.

Acompanhando esse aspecto, não tinha escolha melhor do que Oz Perkins (O Último Capítulo) para o papel de diretor. Se na obra da plataforma de streaming o diretor já demonstrou ser eficiente para construir cenas pesadas baseadas nos jogos de luz, em Maria e João ele consegue provar que também sabe brincar com a escuridão. A obra é carregada inteiramente de ambientes escuros, mesmo durante o dia (o que nos remete ao “clássico” A Bruxa, de 2015). Mas nem por isso somos incapazes de acompanhar tudo que está acontecendo, pelo contrário, esse aspecto mórbido levanta ainda mais a crueza do contexto da narrativa, além de complementar a estranheza em conhecer um ambiente desconhecido e um novo “eu” (moral levantada pela obra). Sem deixar, ainda, de praticar seu ponto forte eficientemente: a trama é cerceada de jogos de luzes que produzem silhuetas misteriosas, a princípio, não acrescentando nada ao roteiro, mas no todo causando o pretendido terror psicológico. De fato essas silhuetas são Hollywoodianas, visto que é o clássico “floresta sombria mais neblina formando desenhos sugestivos“. Entretanto, fugir ao tradicional, desde que seja feito com inteligência, nunca foi e nunca será um erro.

Destaco, também, uma das melhores trilhas sonoras de obras do gênero. Já ouvi que trilhas de filmes de terror psicológico são sempre as mesmas: um violoncelo acompanhando todas as sequências. Não é bem assim. Uma boa trilha sonora é aquela que nem percebemos que está lá, ela apenas “entra” na gente. E é exatamente isso que acontece em Maria e João. R.O.B constrói uma base sonora sombria que acompanha exatamente o que está acontecendo na cena, tendo o clímax da música exatamente nos pontos mais marcantes (algo complicado de realizar, visto que Maria e João é praticamente todo no mesmo ritmo, sem conter cenas de ação definitiva). Para ser mais justo, parte disso também é graças ao roteiro e à direção, pois se esses elementos não levantassem o aspecto fúnebre com eficiência, a trilha não passaria de uma música que apenas atrapalharia o progresso do filme.

E eu sou corajosa.

Apesar dos pontos destacados, as críticas referentes ao filme de uma forma geral estão no máximo medianas, quando não baixíssimas. É claro que as percepções são diferentes, mas há pontos que precisam ser levantados. A primeira é o ódio por causa da inversão no título do filme. Como dito, não há nada mais inteligente do que a troca, visto que a história não é a clássica dos Irmãos Grimms, e sim resultado de uma vontade de inverter a moral do conto. Ainda mais que a trama cerca Maria, então nada mais justo do que ter seu nome posto em destaque. Não é a história de João e Maria, é a história de Maria e João. Outro aspecto bastante criticado são as silhuetas de bruxas aleatórias presentes nas neblinas. Ora, se a história, mesmo que queira se distanciar disso, ainda se passa no mundo do conto de fadas, nada mais justo do que acontecimentos que elevam o fantástico. É tão aleatório quanto o lobo vestido de vovó. No mundo dos contos de fadas, a utopia apenas acontece, não é preciso ter uma explicação realística. E, por fim, o elemento que mais aparece nas críticas: o roteiro não se convence. O fato da protagonista aceitar a bruxaria como algo comum, por exemplo, e conter um encerramento simplório foram motivos para que os espectadores apontassem uma falta de maturidade em um roteiro que quis ser para adultos. Veja bem, mesmo que o roteiro seja adulterado, devemos lembrar novamente que ele ainda é um conto de fadas. Assim, soluções precisam ser simplórias e, em certo ponto, até risíveis. O que altera é a forma com que essas soluções acontecem. E, aqui, são bem maduras.

Por fim, Maria e João: O Conto das Bruxas é uma das melhores releituras já produzidas (se não a melhor). Com uma produção que expressa a personalidade dos autores, a obra consegue cativar por deixar maduro uma história infantil. Não só por isso, a trama é um ótimo terror psicológico, com um roteiro inteligente que consegue inverter a moral da história original sem perder a essência. Lindo de se ver, ótimo de se ouvir e interessante de se acompanhar, a película é uma grande surpresa de 2020.

Maria e João: O Conto das Bruxas (Gretel & Hansel) – EUA, Canadá, África do Sul, Irlanda, 2020
Direção: Oz Perkins
Roteiro: Rob Hayes
Elenco: Sophia Lillis, Samuel Leakey, Charles Babalola, Alice Krige, Jessica de Gouw, Beatrix Perkins, Ian Kenny, Abdul Alshareef, Manuel Pombo
Duração: 87 minutos.

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