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Crítica | Você Não Estava Aqui

por Luiz Santiago
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Existem filmes em que o sentimento que geram no espectador é bem mais intenso, importante e memorável que a própria obra, e isso frequentemente se dá quando a sintonia entre roteiro e direção transmite de maneira magnética e arrasadora uma triste realidade. Notem bem as palavras que eu escolhi para definir essa experiência: “magnética e arrasadora“. Isso porque, diferente de muitas obras baseadas em fatos ou que espelham um problema, uma situação social existente, Você Não Estava Aqui (2019) está muito mais preocupado em exibir o dia a dia da família Turner do que delinear e explorar até o último detalhe a situação da vez: a vida dos trabalhadores por conta própria.

Se você possui a carteirinha de cinéfilo já há algum tempo, certamente sabe o que esperar de um filme dirigido pelo socialista Ken Loach. Novamente acompanhado pelo amigo e parceiro de longa data, o roteirista Paul Laverty, Loach foca desde cedo em algo que o espectador demorará para perceber, mas quando percebe, já está inteiramente mergulhado na situação representada na tela, e isso partindo de uma abordagem que normalmente não é esperada do diretor: a tentativa sincera de uma família conseguir melhorar sua condição de vida — ou pelo menos ter o bastante para manter a casa, os filhos, a comida na mesa… enfim, a vida funcionando no piloto automático financeiro –, através das belas promessas feitas pela informalidade. A realidade do “seja seu próprio chefe“.

Uma das marcas de Ken Loach é o trabalho com atores em começo de carreira ou que nunca fizeram um filme antes, assim como o improviso e o realismo na abordagem dos problemas, tendo grande ajuda da enorme competência de Paul Laverty em escrever diálogos que não parecem fazer parte em um filme, mas uma conversa ou uma discussão que nós já tivemos ou que já vimos alguém ter. No presente filme, o destaque vai para a soberba atuação de Kris Hitchen como Ricky Turner, o pai de família que após pular de emprego em emprego, desempenhando inúmeras funções, decide partir para um contrato de trabalho informal, onde ele, em tese, daria as regras do jogo. Não demora muito tempo, porém, para perceber que esse tipo de contrato não é nem de longe aquilo que promete ser.

Aqui é importante fechar as pontas da questão, para que a imagem da situação social representada (especialmente aos olhos dos que possuem dificuldade de interpretação ou análise de um recorte de problema) seja vista em sua totalidade. A primeira dessas pontas é a funcionalidade desse tipo de emprego. Sim, essa atividade ou linha de contrato funciona bem para alguns e é até a preferência de outros indivíduos e suas famílias. Mas nunca foi a realidade da maioria. Depois, a questão da escolha. Porque os indivíduos que estão nesse tipo de atividade ou em contratos massacrantes, aceitaram os termos, portanto, escolheram trabalhar nessas condições. Basta apenas entender o tipo de “escolha” que estamos falando. Se alguém não consegue emprego em nenhuma outra área, possui dívidas e tem filhos, outros membros da família ou a si mesmo para sustentar, a questão deixa de ser uma escolha e passa a ser uma necessidade. Note também que o recorte aqui é dado para indivíduos que não possuem nenhum tipo de benefício governamental para ajuda/complemento de renda. E isso porque estamos falando de um país do capitalismo central, o Reino Unido. Imagine a mesma situação numa nação acada vez mais embrenhada na periferia do sistema, como a nossa…

Diante desse tipo de ‘novo trabalho’, o pai e a mãe passam a ter menos tempo para eles mesmos (como indivíduos e como casal) e menos ainda para os filhos. Ocorre que a adolescência não espera dificuldades financeiras passarem para depois existir, então os conflitos no seio familiar começam a aparecer e o enredo, assim como a realidade, começa a nos enervar, enfurecer, emocionar. A excelente interpretação que eu comentei antes, vida de Kris Hitchen, passa a ter a sua própria cota em todos os outros atores em cena. Novamente: as discussões, os momentos de alegria e tristeza, tudo neste filme parece uma filmagem real do que acontece com uma família trabalhadora no dia a dia, tamanha é a naturalidade com que o elenco entrega suas performances e como o roteiro não está chamando a atenção para si, justamente por mostrar algo real ocorrendo da maneira mais natural possível, algo que a direção (também muito simples) destaca, fundamentando a impressão documental que o filme em geral nos traz.

A preparação que o cineasta fez em toda a primeira parte começa a dar frutos na segunda, com o espectador percebendo (e talvez vendo um reflexo de sua própria realidade) o horror que é precisar de tempo, mas não ter tempo, porque o trabalho e o trajeto para o trabalho + o cansaço pelo trabalho ocupa a maior parte da vida e drena praticamente toda a energia para que se faça outras coisas. A vida, portanto, passa a ser o cumprimento de horas para pagar coisas que o empregado jamais imaginava que deveria pagar, os raros momentos com a família, as horas de sono e o aprisionamento a situações que são em geral vistas como “grande responsabilidade” mas que na prática mostram algo extremamente triste (e tenho certeza que já aconteceu com praticamente todos os que me leem nesse momento): o ponto de ter que ir trabalhar muito doente por causa do medo de perder o emprego.

A estrutura de crônica para o passar dos dias, aqui, é o meu único impasse em relação à montagem da obra: a divisão em pequenos atos separados por fades. Independente disso, o que temos é o elogiável recorte de um ramo específico do trabalho contemporâneo (a apelidada “uberização“) na base mais fraca da corda social. O mais doloroso da experiência que a obra nos passa é o quão tudo o que o roteiro expõe está ancorado em uma prática que sabemos ser real para esse setor — e também para muitos outros não contemplados por leis trabalhistas. E ainda vale notar que esse tipo de status tem aumentado no mundo todo.

O trabalho sempre foi um aspecto bastante discutido das economias, pois é a partir dele que temos a geração de riqueza (bom… para a maior parte da população do planeta, pelo menos) e a circulação da moeda via mercado consumidor. Com o avanço da tecnologia, o aumento da população, o enxugamento de leis trabalhistas e o amplo incentivo de iniciativas independentes de trabalho, seja de maneira mais livre, contratual, ou através de iniciativas temporariamente mais ousadas, com CNPJ e tudo (a exemplo do Brasil, em final de 2019, início de 2020) um novo tipo de classe trabalhadora tem aparecido. Um novo ajuste de tempo, de deslocamento, de valor de salário que não cobre custo de vida + inflação progressiva e deterioramento da saúde por questões ligadas à estafa tem feito parte das novas discussões. Para nós, aqui no Brasil, a realidade consegue ainda ser mais suja, cruel e até sanguinária que a que vemos em Você Não Estava Aqui, mas o poder dessa obra abre as portas para que a gente sinta, pense e repense o novo mercado de trabalho que está se formando à nossa volta.

Você Não Estava Aqui (Sorry We Missed You) — Reino Unido, França, Bélgica
Direção: Ken Loach
Roteiro: Paul Laverty
Elenco: Kris Hitchen, Debbie Honeywood, Rhys Stone, Katie Proctor, Ross Brewster, Charlie Richmond, Julian Ions, Sheila Dunkerley, Maxie Peters, Christopher John Slater, Heather Wood, Albert Dumba, Natalia Stonebanks, Jordan Collard, Dave Turner, Stephen Clegg, Darren Jones, Nikki Marshall, Micky McGregor
Duração: 101 min.

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